quarta-feira, 19 de julho de 2017

(1999) Wings Of Hope

Alemanha (rodado no Peru) | 70min (versão para cinema) / 42min (versão para a tevê alemã) /49min (versão para a tevê alemã) | super 16 mm |cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Eric Spitzer
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: excertos de Richard Wagner e Ígor Stravinski
Elenco: Werner Herzog, Juliane Koepcke, Juan Zaplana Ramirez

Com o título em alemão Julianes Sturz In Den Dschungel ('Juliane Cai Na Selva‘), Wings Of Hope, da série televisiva Voyages To Hell (da qual também faz parte já analisado Little Dieter Needs To Fly), conta a história da bióloga peruana radicada na Alemanha Juliane Koepcke (1962–), única sobrevivente do acidente aéreo em que um avião peruano caiu no meio da Amazônia Peruana.

Só isso já seria motivo para contar essa grande história. Mas Herzog tem motivos pessoais para se envolver com ela: naquela véspera de Natal em 1971, em que centenas de pessoas disputavam um lugar naquele único voo de Lima para Iquitos, passando por Cuzco (o outro voo programado foi cancelado de última hora por problemas mecânicos), Herzog também pretendia embarcar, a fim de encontrar sua equipe de filmagem, que estava rodando Aguirre, Der Zorn Gottes.

O voo 508, da hoje extinta empresa peruana Lansa, partiu com três horas de atraso, levando 92 pessoas a bordo. Entre elas, Juliane Koepcke, de 17 anos – filha de pais alemães, biólogos, e criada no Peru –, e sua mãe, Maria Koepcke (1924–1971) a fim de encontrar o pai, Hans-Wilhelm Koepcke (1914-2000), na cidade de Pucallpa, onde o voo faria escala.

Porém, poucos minutos após a decolagem, com o céu extremamente nublado, o avião entrou em uma terrível tempestade de raios – há evidências de que a tripulação, contrariando normas de segurança, decidiu enfrentar o mau tempo, a fim de não atrasar ainda mais o voo –, e, após uma enorme turbulência, o avião mergulhou rapidamente rumo ao solo, vítima de um relâmpago que atingiu o motor da asa direita.

Juliane revivendo seus traumas

Juliane só abriria novamente os olhos 19 horas horas depois, coberta de lama e com um profundo ferimento na perna, para se descobrir sozinha em meio à selva. A enorme expedição de busca e salvamento, talvez a maior já executada no país, procurou sobreviventes por 10 dias – a jovem conseguiu sair da selva dois dias após a desistência das buscas. 

"Juliane é uma cientista, muito direta e clara, e a única razão pela qual ela sobreviveu à sua provação foi por sua capacidade de agir metodicamente através dessas circunstâncias absolutamente terríveis", 1 afirma Herzog. “O fato de ela ter caído na selva sem morrer é um milagre, mas sua fuga da selva, não. Foi puro profissionalismo. Ela conhecia a floresta muito bem, desde o tempo gasto na estação ecológica que seus pais construíram, e ela nunca entrou em pânico quando os crocodilos salpicaram dos bancos de areia à esquerda e à direita no rio em que ela estava a vagar. Ela sabia que os crocodilos sempre fogem dos seres humanos e escondem-se na água, nunca na selva. Todos os outros, inclusive eu, teriam fugido para a selva e inevitavelmente morreriam lá”. 2

É inegável que a sobrevivência de Juliane se deu muito ao fato de que ela crescera na estação de pesquisas que seus pais haviam estabelecido em Pucallpa, após chegarem ao Peru, clandestinamente e sem dinheiro, certamente para realizar um sonho e talvez também para fugir da Alemanha arruinada do pós-guerra.

Juliane Kopcke, que também tornou-se bióloga, compreensivelmente ficou muito arredia com o episódio nos anos seguintes, tanto pelo trauma quanto pelo excessivo assédio da imprensa, e manteve o foco em ser uma profissional reconhecida e competente, seguido os passos de seus pais, e não viver apenas como “a sobrevivente”. Isso dificultou muito sua localização por Herzog, que, evidentemente, sempre quisera fazer um filme sobre sua vida.

O diretor conta: “Eu sempre soube que faria esse filme um dia, mas demorou bastante para localizar Juliane. Ela desapareceu e cobriu suas trilhas porque tinha sido assediado pela imprensa tão intensamente após seu resgate, tornando-se muito discreta, se casando e mudando seu nome. Consegui encontrar o pai dela, que imediatamente me disse que nunca daria o nome e o endereço de sua filha a ninguém. Não havia forma de convencê-lo de que eu não era diferente da imprensa. Eu tinha a suspeita de que ela estaria no Peru, porque era lá que ela havia crescido. Eu sabia que ela amava a selva e pensei que poderia estar trabalhando como bióloga em uma das estações ecológicas por lá. No final, a encontrei por meio de alguns cortes de jornal antigos sobre o enterro de sua mãe em uma pequena cidade bávara. Finalmente localizei o padre católico aposentado que enterrou a mãe de Juliane e ele me disse que uma tia ainda estava viva e morava em uma aldeia próxima. Fui direto para lá, mas ela não me contou nada. Pedi-lhe que passasse meu número de telefone para Juliane, o que ela fez. Juliane me ligou, e respondeu que estava vivendo em Munique, e não no Peru“. 3

E assim, finalmente, quase trinta anos depois, Juliane retorna à selva peruana para reviver sua epopeia, em depoimentos, perturbadores de tão desapaixonados, sobre as agruras vividas nos 12 dias em que lutou pela própria sobrevivência, intercalados por narrações em off do diretor sobre fatos complementares ou mesmo deduções (invenções?) acerca de sentimentos e vivências da protagonista em sua jornada.

Essa assertividade desconcertante de Juliane – não sabemos se apenas por sua personalidade ou como forma de naturalizar os próprios traumas – acaba sendo muito importante para manter a situação toda em território especialmente herzogiano: o fato de ela ter sobrevivido ao acidente, e mais, ao ambiente hostil da floresta, é tão improvável e absurdo, em sua realidade indiferente aos prognósticos, que essa frieza só reforça as ideias do diretor sobre o caos inexorável da existência.

A protagonista, em falas desapaixonadas como a de Michael Goldsmith em Echos Aus Einem Düsteren Reich, quase como se tudo aquilo não houvesse acontecido com ela mesma, viaja de avião na mesma fileira e poltrona em que estava quando do acidente, detalha momentos terríveis – com a tranquilidade de quem está com moscas pousando em suas mãos e a rodeando, sem se abalar –, como a sensação de se descobrir sozinha e única sobrevivente, a constatação de que a ferida em sua perna estava coberta por vermes, ou mesmo o encontro com os destroços do fatídico avião, e tudo de forma muito franca e incômoda para o espectador.

O estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager teoriza: “O aparente desapego com que ela fala sobre as larvas que comeram de suas feridas, durante o período em que ela estava perdida na selva, lembra o estranho desapego com o qual Reinhold Messner fala da perda de suas extremidades em Schrei Aus Stein”. 4

Tal como em Little Dieter Needs To Fly, Herzog, talvez preocupado com o excesso de objetividade de seus protagonistas nessa série televisiva, faz uso de muitos sonhos, inventados por ele e atribuídos a Juliane, desde a primeira sequência, com os manequins e animais empalhados em uma vitrine de loja em Lima, que servem de para de fundo para hipotéticas perturbações com aviões feito carcaças de borboletas abatidas em uma gaveta.
Separados e unidos por um acidente

A estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli explica: “Aqui também se recorre ao sonho como momento de pura invenção para descrever com mais exatidão uma realidade íntima e profunda que não encontra palavras para se exprimir. (...) São visões de morte guardadas na mente, e, como tal, não podem ser representadas se não por meio de um forte impulso de abstração“. 5

Brad Prager amplifica a teoria: “Os fatos da experiência de Juliane e o testemunho seriam suficientes para nos deixar sem dúvida quanto à intensidade de seu drama pessoal, mas Herzog é motivado a inventar sonhos obcecados pela morte em seu nome. Ele quer compartilhar neles, talvez porque o estimula a rapsódia poética. Como ele tinha no caso de Little Dieter Needs To Fly, e até certo ponto em Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit e em outros filmes, Herzog aqui modela os sonhos de seu assunto”. 6

Porém, muitos críticos julgam que o diretor pesou a mão em seus sonhos inventados, como que subestimando o poder da narrativa de sua própria protagonista. Brad Prager é um deles: “Ao final de Wings Of Hope, o relato de Herzog sobre o estado mental de Juliane torna-se tão exagerado e hiperbólico que um espectador poderia ser levado concluir que ele está deliberadamente superestimando os efeitos traumáticos de acidente, se não estiver para zombar de Juliane, para testar os limites da aceitação da ideia de que ela estava traumatizada”. 7

De fato, os sonhos, que sabemos serem inventados, incomodam um pouco durante a projeção, visto que a história em si já é impactante o suficiente, mas não creio que cheguem a comprometer o resultado final. Percebe-se claramente que a intenção de Herzog é costurar a incrível coincidência entre a vida dele com a dela – dois alemães de gerações e vidas totalmente distintas, separados por um bilhete de viagem conseguido à pressas – com a fugaz separação que o destino faz entre vida e morte, quem vai e quem fica, nos dando a impressão de que até hoje a vida de Julianna é uma paisagem povoada pelos mortos que o acaso levou embora no seu lugar.

E, sobretudo, a indiferença do acaso, com seus descasos, permeia todo o documentário: tudo é caos, imprevisível, inclemente, e é diante dessa natureza desordenada e hostil que devemos nos afirmar e, sempre que possível, sobreviver.

Incrível história, excelente documentário; recomendo não só para fãs de Herzog ou interessados por aviação (e seus acidentes), mas a todos que desejem ver um filme profundo, instigante e, por que não?, inspirador.


Curiosidades:

– a contragosto de Juliane, sua história já havia sido romanceada no filme italiano de gosto duvidoso Miracles Still Happen, em que sua rude história de sobrevivência fora transformada em uma aventura selvagem mais no estilo do vindouro game Pitfall do que aparentada à realidade cruel e fria de sua odisseia;

– a companhia aérea peruana Lansa, criada em 1963 e extinta em 1972, já possuía vasta reputação negativa, com fama de empregar pilotos sem licença e mecânicos habilitados no máximo para consertar bicicletas, além de voos sobrecarregados, no que resultou, com a tragédia relatada do filme, em inacreditáveis três acidentes em cinco anos, somando 241 vítimas;

– uma espécie de lagarto peruano, Microlophus koepckeorum, tem seu nome científico dado em homenagem aos pais de Juliane [a mãe ainda é homenageada em uma coruja e três pássaros].


1 2 3 HERZOG, Werner. In.: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
4 6 7 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
5 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.