sábado, 6 de maio de 2017

(1997) Little Dieter Needs To Fly

Alemanha (rodado na Tailândia, nos EUA e na Alemanha) | 80min (versão para cinema) | 42min (versão para tevê) | super 16 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog
Direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Ekkehart Baumung
Montagem: Rainer Standke
Fotografia: Peter Zeitlinger e Les Blank
Música: excertos de Béla Bartok, Carlos Cardel, Glenn Miller, Kongar-ol Ondar, Richard Wagner, Antonín Dvořák, Johan Sebastian Bach e música popular de povos das regiões dos Urais (Rússia/Mongólia) e Sayan-Altal (Indonésia)
Elenco: Dieter Dengler

Depois de passar tempo com Dieter, percebi que sua história tinha a qualidade e estrutura de uma tragédia grega antiga. A história de Dieter é a de um homem e seus sonhos, seu castigo e sua redenção.” 1

Feito para a tevê alemã, como parte da série Voyages To Hell (que inclui o próximo filme da lista, Wings Of Hope), este Little Dieter Needs To Fly conta a história do alemão Dieter Dengler (1938–2001), piloto de avião que se alistou na aeronáutica americana, e em uma missão no Laos, às portas da Guerra do Vietnã, foi abatido e feito prisioneiro, sofrendo cruelmente na mão dos captores até conseguir fugir através da selva.

Herzog dá detalhes: “Fui convidado por uma estação de televisão alemã para contribuir para uma série chamada Voyages To Hell. Imediatamente pensei: 'Ah, sim, isso soa muito bem. Meu tipo de coisa. O executivo da televisão realmente queria que eu fizesse um filme sobre mim, todas as coisas sobre o desembarque na prisão na África e os problemas em Fitzcarraldo. Era um trabalho difícil, lhe disse, mas não eram viagens ao inferno. Lembrei-me vagamente de ler sobre Dieter nos anos 1960s, embora já estivesse havia muito esquecido.2

Segundo o filme, Dieter Dengler decidiu desde pequeno que queria voar, curiosamente quando viu bombardeiros aliados sobrevoando seu bairro na Alemanha, durante a Segunda Guerra. Essa vivência no país em guerra, inclusive, foi o que despertou em Herzog a admiração pelo protagonista: “Como eu, Dieter tinha que tomar conta da sua vida desde muito cedo, e porque, como crianças, nós dois sabíamos o que era a fome real, tivemos uma relação imediata.” 3

Dieter é uma pessoa cativante, e tal como o protagonista de Echos Aus Einem Düsteren Reich, conta tudo de forma tranquila, às vezes animada, quase como se aquilo tudo não tivesse acontecido com ele. A reconstituição inclui o retorno ao Laos e até algumas bizarras encenações de maus-tratos e tortura.


Dieter após der resgatado


O estudioso norte-americano de cinema Brad Prager nos conta mais sobre isso: “Mas este regresso deixa também uma impressão em relação à personalidade de Dieter, disposto a retornar à selva, para voltar ao sítio a que regressa todos os dias na sua cabeça". 4 (...) "Ao visitar a vila onde Dieter cresceu – e onde este viu pela primeira vez um avião – os paralelos entre os dois tornam-se visíveis. O ambiente pós-guerra na Alemanha de pobreza extrema e a dura educação que Dieter conheceu, são familiares a Herzog, que é apenas quatro anos mais novo que Dieter. A paixão e perseverança de Dieter em perseguir cegamente o seu sonho encontram paralelo na paixão de Herzog pelo cinema, na intensidade com que procura novas imagens. Herzog observa Dieter não só com admiração, mas como se considerasse, por vezes, que podia ser ele próprio a perseguir aqueles sonhos de voar, tivessem as circunstâncias sido diferentes, poderia ter sido aquele piloto que agora entrevista”. 5

Este crítico do The Guardian refoça os aspectos supracitados do jeito de Dieter Dengler contar com desapego sua própria história: “Mesmo descrevendo apenas punições horríveis (como ser pendurado de cabeça para baixo com um ninho de formigas em seu rosto), Dengler soa como se ele está falando sobre coisas que aconteceram com outra pessoa. "Eles estavam sempre pensando em algo para fazer comigo", ele diz, como se impressionado com sua engenhosidade". 6 (...) "Como sempre, com Herzog, não há nenhuma sugestão de sentimentalismo aqui e nenhuma tentativa de criar um herói ("Somente os mortos são heróis", diz Dengler com firmeza).” 7

Já o diretor afirma para a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli que foi tudo intencional: “Na viagem de regresso de Dieter Dengler, o aspecto mais importante, para além da incrível história de prisão no Laos e da fuga através da selva, está na estilização dos acontecimentos que Herzog consegue encenar. “Tivemos muito cuidado para reconstituir e estilizar a realidade de Dieter. Era necessário que se transformasse num ator que representa a si próprio”, explica Herzog, a propósito do método de trabalho desse filme, e novamente escolhe intensificar a realidade a inventar histórias sugeridas por pormenores e detalhes reais”. 8

Uma resenha do The New York Times toca num ponto importante (além de mencionar o quão esquisito é Dieter contar tudo de forma tão prosaica): o de que, mesmo com as encenações, as histórias tensas e algumas estranhezas tipicamente herzogianas – como um antigo e tosco vídeo para treinamento de soldados na selva –, Little Dieter Needs To Fly faz jus à situação de ‘feito para a tevê’ e se apresenta como um filme bastante convencional, pelo menos diante do que se espera do diretor: '’É uma das obras menos exóticas do cineasta (...), e à luz de seus muitos ideais, sua agradável conversa começa a parecer o aspecto mais estranho do filme. Como diz Herzog: "Ele se esconde atrás da observação casual de que essa era a parte mais divertida de sua vida". 9

Reconstituições

Realmente causa estranheza, bem mais até do que os relatos desapaixonados sobre os malgrados sofridos, que o sonho de alguém seja ir jogar bombas no país alheio, ainda mais alguém que passou fome na infância por causa de uma guerra.

Ao responder sobre as costumeiras críticas aos seus filmes que têm guerras como pano de fundo, Herzog aproveita para defender as motivações de Dieter: “O filme foi geralmente muito bem recebido pelo público americano. Inevitavelmente me perguntaram por que eu não denunciava a agressão americana na Guerra do Vietnã e por que o filme não fazia nenhuma declaração política sobre a guerra. Embora eu sinta que a guerra está sempre muito nas margens do filme, você tem que lembrar que, para Dieter, ela durou apenas quarenta minutos. Nunca foi seu objetivo ir à guerra; Ele só queria voar, e a única chance como um alemão para fazer isso era emigrar para os Estados Unidos. É apenas uma cadeia de coincidências em que ele terminou em uma guerra três semanas depois de ter suas asas. É preciso lembrar que isso foi em 1965. Nesse ponto, os EUA ainda estavam apenas prestando assistência militar em pequena escala aos generais sul-vietnamitas que estavam empenhados em empurrar para trás os infiltrados do norte. (...) De repente, ele estava cheio de vozes e seres humanos, pessoas que estavam famintas e sob pressão de ataques aéreos. E quase imediatamente ele começou a mudar sua atitude, a entender que havia pessoas reais lá embaixo, sofrimento real e morte”. 10

Porém, como aponta a pesquisadora hawaiiana Christina Gerhardt, fica claro que a motivação de Dieter não era só o desejo de pilotar aviões, mas alguma ligação com o espírito da guerra, algum fascínio enraizado desde a infância: “Dieter nasceu em 1938 e emigrou para os EUA em 1956, quando tinha 18 anos. Em 1/4/1955, a Lufthansa inaugurou o serviço aéreo com voos agendados para Frankfurt, Munique, Hamburgo, Dusseldorf e Colônia”. 11

Brad Prager faz a ressalva de que realmente Herzog nunca está interessado na guerra em si, mas nas histórias que ela pode contar – “Como é típico de Herzog, essa história é menos política ou histórica do que existencial12 –, mas considera que talvez isso não seja realmente possível, na prática: “Como foi o caso de Ballade Vom Kleinen Soldaten, Herzog imaginou que ele estava apenas apresentando aos telespectadores uma história dolorosa ou traumática como tal - história de guerra 'sobre si mesma'. Seu trabalho pretendia transcender a política, mas isso é, naturalmente, inimaginável; o filme de Herzog não seria realmente capaz de tirar a história em andamento para descrever um encontro com a selva, a tortura ou a morte como um evento completamente divorciado do seu contexto circundante”. 13

Além disso, ele aponta outro aspecto do documentário que pode ser criticado: “Críticos do filme, e do método de Herzog, apontam que o filme é menos sobre Dieter do que sobre as visões artísticas de Herzog”. 14

A despeito das encenações e fabulações típicas do diretor, com as quais estamos acostumados, o filme tem muitas narrações em off do que seriam pensamentos de Dieter Dengler, porém, sob a voz de Herzog. E ficamos sem saber se realmente o protagonista pensou aquilo ou se foi apenas mais uma estilização herzogiana. Isso incomoda especialmente nesse filme, já que é uma história real e bem documentada, com um personagem vivo e presente na película.

Herzog expõe seu ponto: “Dessa vez as estilizações foram mais sutis. Na verdade, o filme foi filmado duas vezes, em inglês e alemão. Tínhamos muito cuidado com a edição e estilização da realidade de Dieter. Ele tinha que se tornar um ator interpretando a si mesmo. Tudo no filme é o autêntico Dieter, mas para intensificá-lo é tudo reorquestrado, roteirizado e ensaiado. Era meu trabalho como diretor traduzir e editar seus pensamentos em algo profundo e cinematográfico. Às vezes eu tinha que empurrá-lo para condensar uma história que levou quase uma hora em apenas alguns minutos. Quase não há uma cena no filme que não tenha sido filmada pelo menos cinco vezes, até que nós tivéssemos aquilo exatamente certo. Quando Dieter começava a se afastar dos detalhes cruciais da história, eu o parava e pedia que ficasse nos pontos absolutamente essenciais”. 15

O crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013), sempre favorável ao alemão, toma partido: “Herzog vê a sua missão como um cineasta não para se transformar em uma máquina de gravação, mas para ser um colaborador. Ele não fica simplesmente de pé e observa, mas organiza, ajusta e sutilmente melhora, de modo que o filme toma os materiais da aventura de Dengler e transforma em uma coisa nova”. 16

O mesmo crítico também cita o diretor para explicar sobre o excesso de interferência na narrativa do protagonista: “Você conhece uma pessoa que tem uma história incrível para contar, e você raramente tem tempo para ouvi-la, ou a atenção para apreciá-la. 17 (...) Que homem assombroso!, nós pensamos. Mas, se fôssemos sentados ao lado dele em um avião, poderíamos lhe dizer que nós tínhamos visto o filme dele, e fazer um comentário polido sobre isso, e voltar para nossa revista. É preciso arte para transformar a experiência de outra pessoa em nossa própria”. 18

O diretor ascrescenta: “Ele exalava tanta sanidade que não era um problema para ele andar pela selva com as mãos amarradas atrás das costas sendo conduzido por um casal de caras com armas que contratávamos da aldeia mais próxima. "Isso é um pouco perto de casa", dizia ele, mas era apenas uma maneira relativamente segura de conseguir algo extraordinário dele”. 19

Dvořák

Depois de tantas citações, críticas, ataques e defesas, vem a fatídica pergunta: o filme é bom? E eu digo que: ainda não sei exatamente. Tudo o que foi dito aqui, nas palavras dos estudiosos e do próprio diretor, é, em alguma medida, verdade. O filme é mais convencional do que o esperado; a tentativa de evitar as questões básicas da guerra pode incomodar algumas pessoas; a justificativa de Dieter para voar num avião de guerra rumo ao Laos não convence; um trecho divertido, o do vídeo de treinamento para soldados na selva, aparece meio deslocado na narrativa; a despeito de haver muitos relatos do próprio Dieter, muita coisa parece (e é, como veremos) coisa inventada por Herzog, assim como as narrações em off. O resultado final surge meio indefinido, ainda mais pra mim, que vi a versão cinebiográfica antes desses documentário – falarei dela quando chegar o momento nesta maratona, mas me agradou mais do que Little Dieter Needs To Fly.

As cenas (que deveriam ser) mais impactantes, como o fato de Dieter diz ter mania de ficar abrindo e fechando portas, como sinal de liberdade (aparece inclusive um monte de quadros de portas em sua sala), ou a sensação de morte iminente ser como uma água-viva flutuando lenta e silenciosamente num vazio escuro, aparecem muito obviamente como representações do diretor para coisas que o protagonista teria dito ou sentido.

A estudiosa norte-americana de cultura alemã Brigitte Peucker nota outro problema: “Quando o filme recorre à autoridade de fotografias para autenticar eventos e pessoas, sua qualidade extática e sensação de atemporalidade tornam a narrativa menos viva. Juntamente com a filmagem de arquivo, as fotografias servem como ‘garantias’ do documentário”. 20

Herzog, mais uma vez, se explica: “Embora seja verdade que ele tinha alucinações quando estava perto da morte por fome na selva, é claro que Dieter nunca teve qualquer intenção de realmente fazer uma tatuagem. A coisa toda foi idéia minha. Então nós cortamos para ele dirigindo nas colinas do norte da Califórnia e o vimos sair de seu carro, abrindo e fechando a porta do carro e depois entrando em sua casa. Dieter abre e fecha repetidamente a porta da frente, uma cena que criei a partir do que me tinha mencionado casualmente, que, depois de suas experiências na selva, ele realmente apreciava a sensação de ser capaz de abrir uma porta sempre que quisesse. É uma cena também provocada pelas imagens de portas abertas que vemos dentro de sua casa, que eram eram realmente dele, algo que ele também fala em sua autobiografia”. 21

Roger Ebert reforça: “A imagem da água-viva, por exemplo – ‘essa foi a minha ideia’
, disse Herzog, da mesma forma que a abertura e fechamento das portas, embora não a imagem do urso [que o estaria seguindo na mata durante a fuga]". 22

Enfim, acho que é melhor você procurar a versão para televisão, que tem metade do tempo da versão para cinema; deve deixar a coisa toda mais sucinta e impactante. Apesar de todos os problemas e de todas as polêmicas, a película tem momentos muito bonitos, como Dieter refletindo de forma, mais digamos, humana, sobre seus companheiros de fuga mortos, ou a decisiva travessia de um rio, que seria crucial para a fuga. Nesses momentos, é impossível não ficar emotivo com os curtos excertos de
Dvořák, que surgem cheios de melancolia.

No mais, temos algumas marcas registradas que são praxe nos filmes do alemão: personagem solitário, natureza implacável, destino cheio de desventuras, mitas tomadas aéreas e toda essa reconstrução dos fatos em ideias que sirvam, na opinião do diretor, melhor à narrativa. Vale a pena conferir e tirar suas próprias conclusões.



Curiosidades:

– a epígrafe do filme – “E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; e desejarão morrer, e a morte fugirá deles” – é a mesma de Lektionen In Finsternis (Apocalipse 9:6);

– Dieter Dengler ficou conhecido pelo grande público primeiramente com seu relato autobiográfico Escape From Laos, de 1979;

– Herzog afirma que existiu desde o início a intenção de filmar as duas formas da mesma história (documentário e cinebiografia), mas só obteve financiamento para o segundo filme (que seria Rescue Dawn, de 2007, com Christian Bale) anos mais tarde;

– a versão em DVD inclui um epílogo que conta a morte de Dieter Dengler por esclerose lateral amiotrófica em fevereiro de 2001 e mostra imagens de seu enterro no Arlington National Cemetary, o mais tradicional cemitério militar dos EUA.


1 2 3 10 15 19 21 HERZOG, Werner. In.: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
4 5 12 13 14 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
6 7 https://www.theguardian.com/film/2007/nov/02/dvdreviews.worldcinema2
8 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
9 http://www.nytimes.com/movie/review?res=9802E6DE1F3AF93BA35757C0A96E958260
11 GERHARDT, Christina. The Allied Air Bombing Campaign Of Germany In Herzog’s Little Dieter Needs To Fly. In.: Bombs Away!: Representing The Air War Over Europe And Japan. Brill Online, 2006.
16 17 18 22 http://www.rogerebert.com/reviews/little-dieter-needs-to-fly-1998
20 PEUCKER. Brigitte. Herzog And Auteurism: Performing Authenticity. In.: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.