quinta-feira, 30 de março de 2017

(1995) Gesualdo: Tod Für Fünf Stimmen

Alemanha (rodado na Itália) | 60min | super 16 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog
Direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Ekkehart Baumung
Montagem: Rainer Standke
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: excertos de Carlo Gesualdo e Richard Wagner
Elenco: Pasquale D’Onofrio, Salvatore Catorano, Angelo Carrabs, Milva, Angelo Michele Torrielo, Raffaele Virocolo, Vincenzo Giusto, Giovanni Iudica, Walter Beloch, Píncipe D’’Avalos, Antonio Massa, Alan Curtis, Gennaro Miccio, Silvano Milli, Marisa Milli, Gerald Piace, Alberto Lanini, Complesso Barocco, Gesualdo Consort of London


Acho que de todos os meus ‘documentários’, Tod Für Fünf Stimmen é o que realmente sai do controle, e é um dos meus filmes do coração.1


Feito para a tevê alemã, este média-metragem (“Gesualdo: Morte Para Cinco Vozes”) é sobre o controverso compositor clássico italiano Carlo Gesualdo (1566–1613), compositor renascentista tardio de belos madrigais [estudiosos afirmam que ele já preconizava coisas que o romântico alemão Richard Wagner (1813–1883) só desenvolveria dois séculos depois], nobre (príncipe de Venosa, ao norte do país) e infame por ter assassinado brutalmente sua esposa e o amante dela.

Herzog explica a importância da obra de Gesualdo: "Os outros livros estão mais no contexto de seu tempo, mas com seu Sexto Livro de Madrigais, de repente Gesualdo parece passar 400 anos à frente de seu tempo, compondo música que ouviríamos apenas de Stravinski em diante. Há segmentos em Tod Für Fünf Stimmen em que ouvimos cada uma das cinco vozes de um madrigal individualmente. Cada voz individual soa perfeitamente normal, mas na combinação a música soa muito à frente do tempo, mesmo de nosso próprio tempo”. 2

Gesualdo, o real (?)

Se ter como delimitar onde residem em Gesualdo o nobre, o compositor e o assassino (ou sem ter esse interesse), Herzog estrutura o filme em duas linhas que se intercalam: uma com dois diretores de coral comentando sobre a importância dos madrigais e de outras peças sacras de Gesualdo e dirigindo eles mesmos performances de algumas dessas obras, e outra com atores e moradores locais encenando histórias e lendas em torno dos crimes e do fim de sua vida.

O que liga essas duas vertentes do filme (as tais "vozes" do título) é a premissa, adotada por Herzog, de que Gesualdo se torturou, física e emocionalmente, em expiação pelo que tinha feito, e que isso se reflete na parte final de sua obra, o Sexto Livro de Madrigais.

O que eu queria aqui era trabalhar com o fato de que nos últimos anos de sua vida Gesualdo estava basicamente louco; ele realmente perdeu a cabeça. Ele, sozinho, cortou toda a floresta ao redor de seu castelo e contratou jovens que tinham a tarefa de flagelá-lo todos os dias, algo que lhe causava feridas, e, aparentemente, o matou”, explica o alemão. 3

A partir disso, o filme não apresenta simplesmente a lenda por meio de uma variedade de vozes – "Herzog aborda seu assunto por meio de imagens fragmentárias, de modo a abrir um espaço para pensamento e imaginação independentes" 4, como diz o estudioso inglês de música Holly Rogers –, mas também toma a liberdade de misturar fatos, especulações, lendas e até mesmo fabulações próprias.

Como ele mesmo afirma, fiel aos próprios preceitos de ‘verdade extática’ e confusão proposital entre ficção e realidade: “A maioria das histórias do filme são completamente inventadas e encenadas; contudo, contêm as mais profundas verdades possíveis sobre Gesualdo”. 5 (...) “Não interessa o que é inventado no filme porque a sua biografia é profundamente compreendida e creio que essa é a forma como devemos compreender a vida de Gesualdo”. 6 (...) “Esse filme é bastante selvagem, tal como The Wild Blue Yonder (2005). Em Gesualdo, muitos dos pormenores se baseiam me fatos históricos, mas muitas situações no filme são pura fantasia. Nunca farei um filme que explique o mundo de Gesualdo melhor do que esse. E é a verdade pura sobre Gesualdo, mesmo que muitas coisas fossem franca invenção”. 7

Encenações

Mas, a despeito de tudo isso que o diretor acha sobre o filme, não gostei nem um pouco do resultado final. As partes em que são executados trechos dos madrigais são muito bonitas, porém, as explicações sobre a obra de Gesualdo não é muito aprofundada, não dá para entender na prática porque ele foi/é considerado tão genial; e a parte encenada, sinceramente, eu achei ridícula e desnecessária. As atuações são propositalmente exageradas em sua dramaticidade, o que deixa as histórias (reais e imaginárias) escabrosas sobre os crimes (e toda a loucura que os sucederam) sem muito impacto. 

Holly Rogers afirma que “Como Fitzcarraldo, Gesualdo é um protagonista impulsionado igualmente por música e mania”. 8 Perfeito. Justamente por isso que esse interesse deveria ter levado a algo melhor do que um programa para a televisão que termina nos deixando a sensação de ter visto um SBT Repórter ou algo igualmente tosco. Sinceramente? Passe longe de Gesualdo: Tod Für Fünf Stimmen; deve haver documentário melhor internet afora, caso alguém tenha se interessado pela história.


Curiosidades:

– Herzog conta que, quando ouviu os madrigais de Gesualdo pela primeira vez, ficou tão impressionado com a “grande revelação” que ligou “aos gritos, fora de si9 para Florian Ficke (seu colaborador musical de longa data): “Era quase como se estivesse descoberto um continente novo... fui abalado até o mais profundo da minha existência com esse ‘encontro’”; 10

– Herzog tem em casa um quadro de Gesualdo ajoelhado, oferecido pela Fundação que leva seu nome, e que seria a única vez em que uma pintura o retratou;

– a história de que Gesualdo teria matado seu filho de dois anos por suspeitar de sua paternidade foi uma das coisas ‘meio que’ inventadas por Herzog, como ele mesmo explica: “Há uma alusão, em alguns dos documentos existentes, a ele matando seu filho pequeno, mas nenhuma prova absoluta"; 11

– entre as pessoas que encenam momentos que pertenceriam à vida torturada de Gesualdo, temos a cantora pop e atriz italiana Milva (1939–);

– Gesualdo aparece como personagem de obras dos escritores Aldous Huxley (1894–1963), Anatole France (1844–1924) e Juio Cortázar (1914–1984) e dos compositores Franz Hummel (1939–), Alfred Schnittke (1934–1998) e Ígor Stravinski (1882–1971) – que também fez diversas peregrinações a seu castelo;

– entre Glocken Aus Der Tiefe e Gesualdo: Tod Für Fünf Stimmen, Herzog realizou, para a televisão alemã, Die Verwandlung Der Welt In Musik (“A transformação do Mundo em Música”) sobre o renomado festival de música dedicado a Richard Wagner na cidade de Bayreuth (leste alemão).


1 2 3 5 9 10 11 HERZOG, Werner. In.: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
6 7 HERZOG, Werner. In.: Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.
4 8
ROGERS, Holly. Death For Five Voices: Gesualdo’s “Poetic Truth”. In.: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.

quinta-feira, 23 de março de 2017

(1993) Glocken Aus Der Tiefe

Alemanha (rodado na Rússia) | 60min | super 16 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog
Direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Vyacheslav Belozerov
Montagem: Rainer Standke
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: coros da Academia Espitirual de São Petesburgo, do Mosteiro de Zagorsk e do Pühtica Dormition Convent
Elenco: Werner Herzog (narração em off)


Reagimos com muito mais fervor e paixão à poesia do que à mera reportagem televisiva”. 1 (...) “Sabemos há muito tempo que o poeta é capaz de articular uma coisa profunda, inerente e misteriosa melhor do que qualquer outra pessoa. Mas, por algum motivo cineastas - especialmente aqueles que lidam com a verdade do contador - não têm conhecimento disso, enquanto continuam a negociar os seus produtos desatualizados”. 2

Glocken Aus Der Tiefe (‘Sinos das Profundezas’ em alemão, traduzido comercialmente em português como ‘Sinos do Abismo’), com o explicativo subtítulo Glaube Und Aberglaube In Russland (‘Fé e Superstição na Rússia’), é um média-metragem sobre diversas expressões religiosas – muitas bem idiossincráticas, como só poderiam ser – nas populações russas, especialmente nas bucólicas paragens da Sibéria após a queda do comunismo, em que as manifestações religiosas eram fortemente reprimidas.

Como em outros médias de Herzog, não há a preocupação de contar uma história com início, meio e fim, ou mesmo provar alguma teoria: é mais uma polaroide (com o devido tratamento extático do diretor) de algo peculiar que o diretor resolveu expor na tela. No caso, o diretor achou que aquela face mística do povo russo seria uma característica digna de apresentação (e representação), uma conexão ao mesmo tempo com a terra e com o céu.

O diretor não faz nenhum juízo de valor sobre o que mostra na tela; como bem aponta o estudioso norte-americano de cinema Brad Prager: “Com a exceção à referência a superstição em seu [sub]título, de qualquer forma, Herzog nem uma única vez indica que seu ‘approach’ é cínico.” 3


Verdade fria & extática

Assim, após a impactante primeira cena, com senhores rastejando no meio de um lago congelado, somos apresentados, em curtos capítulos, a diversas crenças – algumas bem estranhas para nós, outras nem tanto –, como um exorcismo tipicamente neopentecostal, um Inri Cristo russo, um batismo ortodoxo um tanto violento, um pregador de ‘energia cósmica’, um casal de velhos que fica andando de joelhos em meio à taiga, um solitário e virtuoso tocado de sinos de igreja e um (irritante) casal de cantores mongóis, entre outros.


Até que, no final, retornamos ao tema inicial, o lago congelado, com belíssima lenda da cidade de Kitezh, que teria lugar em Nizhny Novgorod, na Rússia Central: sistematicamente invadida e pilhada por tártaros e mongóis, seus habitantes pediram que Deus a protegesse, no que ele mandou um arcanjo que mudou a cidade para o fundo de um lago [Lago Svetloyar], onde os moradores pudessem encontrar finalmente a paz, entoando hinos e tocando os sinos das igrejas por toda a eternidade.

É uma belíssima história, sem dúvida [aparentemente é popular no país], e acho inclusive que devia, se não englobar todo o média-metragem, ao menos ter mais espaço na projeção.

De qualquer forma, o filme termina com a confluência de todas as narrativas para esse lago congelado, onde novamente pessoas rastejam a fim de ouvir, através do gelo, os cânticos e sinos da cidade sagrada.

A despeito de a verdade extática de Herzog trabalhar fortemente aqui, como você verá a seguir – e embora esse tipo de falseamento em prol da narrativa seja uma das bases de sua obra, isso aqui pode incomodar um pouco por ser uma anedota conhecida e muito explícita em cena –, é uma história muito bonita, e mesmo sabendo da encenação, o final continua bonito e impactante; nas palavras do diretor:

Durante o verão, peregrinos rastejam de quatro em volta do lago, fazendo suas preces. Eu também estava lá, no início do inverno, porque queria cenas deles olhando através do gelo, tentando obter um vislumbre da cidade perdida. Infelizmente não havia ninguém ao redor, então contratei dois bêbados da cidade vizinha e lhes pedi para bancar os peregrinos. Um deles está com a cara no gelo e parece que ele está em profunda meditação. A verdade: adormeceu profundamente". 4 (...) "A cena dos bêbados que procuram cidades representa de alguma forma a Rússia; o país inteiro está secretamente à procura da Cidade Perdida de Kitezh. Russos que viram Glocken Aus Der Tiefe consideram essa sequência o melhor no filme. Compreendem a devota paixão e o fervor religioso de pessoas que olham tão atentamente para baixo, com uma concentração inabalável, para as profundezas abaixo”. 5

É uma visão ao mesmo tempo crua, sem julgamentos, e sensível, sobre um tema que, incomumente na obra do alemão, traz harmonia entre as aspirações de transcender a própria impermanência e a rudeza silenciosa e indiferente da natureza hostil e imutável em sua essência: mãos ao céu, corpos ao chão, ligações corporais e espirituais com o corpóreo e o imaterial, entre a fé e a superstição (o que as difere?). Werner Herzog nunca fora tão harmonioso em suas manifestações cinematográficas.

O próprio diretor explica: “O cinema-verdade pode capturar apenas a superfície da verdade; e há ainda no cinema um estrato mais profundo de verdade que eu tenho tentado em toda a minha vida de trabalho alcançar. Essa profunda verdade interna inerente ao cinema às vezes pode ser descoberta simplesmente por não ser burocraticamente, politicamente e matematicamente correta. Em outras palavras, eu começo a inventar. Por meio da invenção, por meio da imaginação, por meio da fabricação, me tornei mais verdadeiro que os pequenos burocratas”. 6


Inri Cristo

Nos créditos finais, uma cena de patinadores naquele mesmo gelo que abrigaria a cidade sagrada parece nos dizer para não levar tudo aquilo a sério, no sentido de ser um documentário ordinário antropológico sobre a raiz das superstições/crenças do povo russo em meio à taiga. É apenas um mosaico poético, e por que não?, bizarro, como o diretor bem curte, de histórias incomuns, que merecem ser contadas/encenadas. Ou, talvez, essa sequência represente a vida comum, mundana, que tantos levem, enquanto esses segredos místicos imemoriais residam acima e abaixo deles.

Como diz a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli: “A cena foi encenada, mas claro que não interessa. Esses momentos são tão extraordinários que os temos que encenar de forma a atingir uma verdade extática e profunda”. 7

Herzog, evidentemente, concorda: “O engraçado é que os russos que viram o filme adoram esse momento. Penso que, de certa maneira, a alma russa tem sua melhor explicação nessa lenda da cidade afundada. A parte difícil foi descrever a alma russa em um filme que só dura 52 minutos”. 8

Para além da bonita lenda e dos intrigantes personagens e costumes que surgem diante de nós nas paisagens frias da taiga, o especialista norte-americano em cinema alemão Eric Ames conclui: “Embora pouco conhecido, Glocken Aus Der Tiefe oferece um dos melhores exemplos da abordagem de Herzog para o documentário, especialmente o seu uso de diálogo com scripts, detalhes fabricados e sequências encenadas. Nenhum desses dispositivos está marcado dentro do filme. É somente por causa do desempenho do diretor em locais extrafilmicos, tais como entrevistas, que nós sabemos de seu uso”. 9 (...) “De certa forma, a espiritualidade é a base de ensaio definitiva para a noção de verdade de Herzog no cinema documental”. 10

Em resumo, um belo filme, simples e, de certa forma, despretensioso; vale a pena reservar uma hora do seu dia para vê-lo, seja você fã de Werner Herzog, misticismo russo ou costumes siberianos.


Curiosidades:

– segundo o director, a chave para Glocken Aus Der Tiefe foi Viktor Danilov, um tradutor/intérprete que ele conheceu enquanto fazia uma ponta no longa germano-soviético Hard To Be A God, de Peter Fleischmann (1937–), e que o ajudou não só com os diálogos, mas também com o que seria extraído de cada entrevistado de seu filme;

Glocken Aus Der Tiefe faz parte de uma série de seis filmes sobre a Rússia, feitos por diferentes diretores [os demais são Una WertmUller, Jean-Luc Godard, Peter Bogdanovich, Nobuhiko Ohbayashi e Ken Russel];

– o filme nem começa na Rússia, mas numa república autônoma da Mongólia, e o senhor não está cantando nada religioso, mas apenas uma canção folclórica sobre a beleza das montanhas;

– os demais peregrinos no gelo na sequência inicial/final, são, na verdade, pescadores;

– um dos corais de fundo, o formado por vozes de crianças, está, na verdade, entoando uma canção de amor;

– o ‘Inri Cristo Siberiano’, Sergey Anatolyevitch Torop, tornar-se-ia bastante conhecido na Rússia como líder religioso, adotando o nome Vissarion.


1 2 HERZOG, Werner. In.: Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog, de Eric Ames. University Of Minnesota Press, 2012.
3 HERZOG, Werner. In.: PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
4 5 HERZOG, Werner. In.: Werner Herzog: A Guide For The Perplexed, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2014.
6 http://parnassusreview.com/archives/388
7 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
8 HERZOG, Werner. In.: Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.
9 10 AMES, Eric.
Ferocious Reality - Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.