segunda-feira, 1 de agosto de 2016

(1990) Echos Aus Einem Düsteren Reich

Alemanha (rodado na República Centro-Africana) | 93min | 16 mm |cor
Roteiro, direção e produção: Werner Herzog
Som: Haraud Maury
Montagem: Rainer Standkle
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Bartok, Prokofiev, Lutoslawski, Shostakovitch, Schubert, Bach e Lanardier
Elenco: Michael Goldsmith, François Gilbault, Augutine Assemat, Francis Szpiner, David Dacko, Marie-Raine Hassen


O filme nos permite revelar as verdades menos compreendidas do homem. Ele investiga as nossas fantasias e nossos sonhos - neste caso, nossos pesadelos. Bokassa representou o tipo de escuridão humana você encontra em Nero ou Calígula, e Echos Aus Einem Düsteren Reich foi uma tentativa de explorar os abismos escuros que estão no coração do homem.” ¹

Em mais uma incursão a África, Werner Herzog leva o jornalista austríaco radicado na Inglaterra Michael Goldsmith (1921–1990) até a República Cebntro-Africana, onde, em 1977, quando cobria a cerimônia em que o ditador Jean-Bédel Bokassa (1921–1996) entronizou a si mesmo como imperador do país, foi preso e torturado por um mês por suspeitarem [injustamente] de que ele fosse um espião.

Nessa nova visita, Goldsmith conversa com parentes, aliados, desafetos e gente que também sofreu com os desmandos de Bokassa. Aparentemente, ele não tinhas grandes traumas com o ocorrido – diz-se que chegou a manter contato com o ditador quando este estava exilado na França –, e o contato com mulheres e advogados de seu algoz não lhe trazem nenhum rancor. O jornalista mostra real interesse e empatia por todos os relatos, bons ou ruins, que vão construindo as camadas de terror que não só ele ou aquelas pessoas, mas que todo o país viveu no final da década de 1970.

Império sombrio

Goldsmith não sentia nenhum prazer na queda do tirano, não há sinal de qualquer vingança, mas apenas paciência, o que chega a ser incômodo, dada toda a escuridão em que ele vai submergindo a cada história ouvida. Chega-se a pensar o que de fato ele pretende com essa viagem, além de ser prestativo com o amigo diretor.

E o filme também não se detém em sua experiência pessoal: o jornalista é apenas a porta de entrada que Herzog – desta vez quase sem interferir na história, narrando ou na frente das câmeras – usa para montar seu quebra-cabeças sobre tirania e colonialismo.

Bokassa só aparece em imagens de arquivo, a maioria quando de sua ridícula e faraônica autocoroação imperial; essas cenas, aliás, com trilha musical clássica, são de grande impacto, ao mesmo tempo melancólicas e sombrias, até para quem não conhece direito a história.

Ascensão


Queda
Herzog tentou entrevistar o ditador, que estava preso na época, mas não lhe foi permitido. Isso normalmente seria um problema, mas, como nota a jornalista norte-americana Janet Maslin, “a ausência de Bokassa acaba sendo estranhamente útil ao Sr. Herzog, que caracteristicamente encontra mais no mistério de Bokassa do que no homem real”. ²

Assim, o diretor vai juntando peças sobre Jean-Bédel: o pai de muitos filhos, o assediador de mulheres, o tirano que se achava maior que seus conterrâneos e os executava por qualquer coisa, o (aparente) fantoche nas mãos do imperialismo francês e o (possivelmente) canibal, numa viagem ao coração das trevas.

Obviamente que, assim como em Wodaabe, Die Hirten Der Sonne e outros tantos filmes, Herzog não está nem um pouco em seguir rigores sociológicos e historiográficos na construção de sua obra; inclusive é bom estudar um pouco sobre a ditadura centro-africana antes de ver o filme, uma vez que, segundo o próprio diretor, “Chamar Echos Aus Einem Düsteren Reich de ‘documentário’ é como dizer que a pintura que Andy Wharhol fez das latas de sopa Campbell’s seja um documento sobre sopa de tomate”. ³

O interesse de Herzog evidentemente reside no caráter megalomaníaco de Bokassa, um ditador tão insano quanto seu Aguirre, tão delirante quando seu Fitzcarraldo, e possivelmente tão manipulado quanto seu Cobra Verde. E toda essa loucura e todo esse horror são apresentados não só por meio dos relatos dos locais e das reminiscências de Goldsmith – não esperaríamos algo tão convencional assim do diretor –, mas por imagens tão sombrias, melancólicas e evocativas de pesadelos quanto as cenas de arquivos de Bokassa.

Nas palavras de Janet Maslin: “Ao longo de Echos Aus Einem Düsteren Reich, a câmera do Sr. Herzog tacitamente absorve a loucura do legado de Bokassa e às vezes transforma aquela loucura em visões fascinantes. (...) Uma estátua do ditador jaz enferrujando nas ervas daninhas e um macaco fuma um cigarro com enervante intensidade nas ruínas do zoológico particular do imperador. O pesadelo de um mundo inundado por caranguejos laranja do Sr. Goldsmith é ilustrado literalmente, em cores estranhamente brilhantes”. 4

De fato, todas essas cenas têm muito impacto, especialmente o mar de caranguejos invadindo a paisagem, direto do recorrente sonho do jornalista, logo no início do filme. Mas é a sequência final, com o macaco pedindo um cigarro e fumando, que traz um incômodo que parece demais até para Goldsmith, que permanecia tranquilo em toda a viagem até então.

Mar vermelho-sangue

Como analisa o especialista norte-americano em cinema alemão Brad Prager, “há algo acusatório no olhar do macaco. É como se o primata fosse mais humano que os humanos que fariam tais coisas uns com os outros, aqueles que agiriam como torturadores e canibais. Diferentemente das galinhas [Stroszek e vários outros filmes], dos dromedários [Auch Zwerge Haben Klein Angefangen] e das águas-vivas [Bad Lieutenant, de 2009] nos filmes de Herzog, esse macaco nos pergunta se ainda podemos reconhecer algum traço do que já foi humano em nós mesmos”. 5

Se Bokassa era apenas um palhaço, um ditador reles e ignorante, de perfil sanguinário, como a imprensa ocidental sempre o tratou, ou se era um mero fantoche da França, um capacho metido a napoleão, porém, muito conveniente ao colonialismo, fica por conta de como cada um monta as peças apresentadas por Herzog.

Mas a cena do macaco fumante é inequívoca: “Retoma os aspectos miméticos do filme: a violência colonial – e seus abusos – sempre retorna em uma forma inesperada e assustadora”, como conclui Brad Prager.

A despeito de os relatos, a certa altura, se tornarem um tanto enfadonhos, e de o filme ser bem difícil de ser encontrado por estas plagas (tem no Youtube, com legendas em alemão, e há por aí um torrent em duas partes, com legendas em espanhol), quem gosta de bom cinema deve tentar assistir a este filme, nem que seja apenas pelas sequências inicial e final.

Pois, como diz Janet Maslin sobre o filme, fazendo referência à marcha dos caranguejos (e sobre todo o colonialismo, evidentemente), “o pensamento de uma praga monstruosa e inexorável permanece na memória por muito tempo depois que Bokassa desvanece”.

More human than human

[A partir do próximo post, entraremos no profícuo período noventista de Herzog, com onze filmes em dez anos.]



Curiosidades:

– a sequência com os caranguejos-vermelhos fazendo sua conhecida e impressionante migração anual na Ilha Christmas (próxima a Indonésia, mas pertencente a Austrália) seria reutilizada no final de Invincible (2001);

– apesar de o filme ser feito aparentemente tendo Goldsmith como centro, Herzog o conheceu quando já tinha a ideia do filme;

– Michael Goldsmith, aliás, morreu pouco tempo após o lançamento do filme, devido a uma hemorragia estomacal.



¹ CRONIN, Paul. Werner Herzog: A Guide For The Perplexed. Faber & Faber, 2014.
² 4 http://www.nytimes.com/movie/review?res=9E0CE5DA133CF936A25754C0A964958260.
³ HERZOG, Werner. In: The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth, de Brad Prager. Wallflower Press, 2007.
5 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

(1989) Wodaabe, Die Hirten Der Sonne

Alemanha (rodado em Níger) | 52min | 16 mm |cor
Roteiro, direção e produção: Werner Herzog
Som: Walter Saxer
Montagem: Maximiliane Mainka
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Gounod, Sänger, Mozart, Handel e Verdi
Elenco: tribo Woodabe


Co-produção entre TVs alemãs e francesas, este média-metragem volta sua atenção para os wodaabes, tribo nômade do Sahel, região ao sul do Saara. Considerando a si mesmos o povo mais belo do mundo, eles possuem uma festa da fertilidade que dura dez dias, a qual inclui uma espécie de concurso próprio de beleza, em que cada homem jovem tenta mostrar às mulheres que é o mais bonito, na esperança de ganhar uma namorada.

O próprio Herzog detalha o processo: “Durante os preparativos para o concurso de beleza, grupos de jovens nos acampamentos brincam e dão risada, tornando-se tão bonitos quanto possível; eles se vendem e se maquiam com corantes naturais triturados em pó. Alguns levam um dia inteiro para se preparar para o festival, que começa ao amanhecer e dura cinco dias. Pensa-se ser particularmente bonito mostrar o máximo dos dentes e o quanto possível do branco do globo ocular, e alguns dos homens reviram os olhos para cima, como se estivessem em êxtase. Uma sucessão de danças e rituais complexos são realizados, com os homens em linhas retas, caminhando para a frente, fazendo uma careta em êxtase, em seguida, recuando até o momento da decisão, quando o vencedor é escolhido”. 1

Os homens mais bonitos do mundo

Além disso, o filme se ocupa um tanto da triste (e contrastante com seus alegres rituais) situação da tribo à época: devido a uma grande seca em 1984, os wodaabes tiveram de deixar o Sahel e se abrigar em um campo de refugiados nos confins da Argélia, onde obviamente se sentiam deslocados (ainda que fossem nômades) e de temiam jamais conseguir sair.

Logo após Cobra Verde, imediatamente antes de Echos Aus Einem Düsteren Reich (1990) e tendo no currículo Die Fliegenden Ärzte Von Ostafrika e Fata Morgana, Herzog volta à África, pela qual é fascinado a ponto de torná-la um personagem, um protagonista (como já fizera assumidamente em Cobra Verde e, de certa forma, em Fata Morgana).

Como explica a estudiosa inglesa de cinema alemão Erica Carter, “Herzog dirige sua fascinação com a África para a suposta afinidade do continente com o 'primordial', o 'arquetípico', 'caos e escuridão. Muito como [Joseph] Conrad [1857–1924], cuja ficção ele admira muito, Herzog retorna à África repetidamente como uma fonte de verdade estética extática a que sua filmografia aspira”. 2

A consequência disso, segundo o estudioso norte-americano de cinema alemão Eric Ames, é que “em vez de organizar o filme em torno de uma única pessoa, como ele faz em outros lugares, Herzog representa os wodaabes como um corpo coletivo de não-ocidentais”. 3

O fato é que o diretor não tem nenhuma pretensão de analisar a fundo os wodaabes e suas questões ou seus hábitos. Não é que ele não se interesse pelos indivíduos, pelo contrário; além de seu interesse pelo personagem-África, a escolha de se deter em apenas dois aspectos da tribo (o ritual amoroso e a diáspora) manifesta uma recusa em fazer uma obra etnográfica/antropológica (até por que já havia vários documentários sobre os wodaabe à época).

Eric Ames detalha: “Herzog não faz nenhuma tentativa de retratar todo um modo de vida do ‘ponto de vista nativo’, nem tem a pretensão de ‘preservar’ seus traços em forma de arquivo. Ele, obviamente, não está tentando ter seu trabalho aceito como a antropologia ou autenticado por especialistas”. 4

E o próprio diretor deixa claro: “Eu propositadamente me afastei de qualquer coisa que pudesse ser considerada antropológica. Na cena de abertura, do bizarro concurso de beleza masculina, os homens da tribo estão rolando seus globos oculares, exaltando a brancura dos seus dentes, e fazendo caretas de êxtase. O fato de que eles estavam sendo filmados não fez diferença; eles foram completamente imersos no espetáculo. Esses jovens são tão descontroladamente estilizados, por que não deveria ser também?5

Seu interesse, como sempre, é a busca da verdade extática, e ela está concentrada no ritual de embelezamento dos homens para conquistar as mulheres da tribo; porém – e não se sabe se essa era a intenção original do diretor ou se a questão surgiu durante as filmagens –, a história é levada para um evidente traço de conflito, inadequação, dos wodaabes para com a modernidade.

O especialista norte-americano em cinema alemão Brad Prager ilustra bem a problemática: “Vemos uma incursão do século 20 em uma cultura ancestral, como mostrado em Fata Morgana. Herzog inclui cenas de crianças em Arlit [cidade industrial em Níger] enquanto fuçam comida no lixo. Um homem da tribo, forçado a viver na cidade, diz à câmera: ‘Aqui está a areia da amargura’”. (...) “O que interessa mais do que qualquer coisa nesse povo para Herzog são seus hábitos nômades – Herzog está sempre interessado em andarilhos e pioneiros – tanto quanto na recusa deles em carregar a bagagem do século 20. Eles têm pouco além de seus dotes e algumas necessidades básicas. O século 20 é uma dificuldade para esse povo digno”. 6


Areia da amargura

Essa dignidade é deixada bem claro no modo como Herzog retrata a pureza como dogma para os wodaabes, um povo que, ao mesmo tempo leva uma vida muito simples e humilde, com privações na modernidade e sem qualquer sofisticação, ainda mantém a vaidade primordial de se achar especial, o povo mais belo que há. Isso faz com que esse "coletivo não-ocidental" apareça evidentemente idealizado, como já eram os aborígenes de Wo Die Grünen Ameisen Träumen, porém, sem o contraponto personalizado nos brancos; a opressão é personificada nas mudanças climáticas, no esgotamento dos recursos naturais e no pouco tato com as minorias tribais.

A jornalista norte-americana Janet Maslin reforça: “O filme pertence ao crescente gênero de ‘ecotragédia’ [como já era Wo Die Grünen Ameisen Träumen], apresentando evidências de que um conjunto outrora viável de costumes pode agora ser obsoleto. Experientes no pastoreio de gado (o wodaabes podem levantar acampamento em menos de uma hora) e totalmente dependentes de bens comercializados para o gado no mercado, o wodaabes sofreram os efeitos da recente seca e da fome e viram-se forçados a viver na cidade, para a qual estavam totalmente despreparados”. 7

Outra conexão com Fata Morgana – o olhar moderno sobre algo primordial que está se desfazendo – surge na sequência de abertura, de longe a melhor coisa do filme, em que os homens wodaabes, maquiados, exibem exageradamente seus dentes e olhos para a câmera, enfileirados.

Herzog deixa claro como o filme se insere perfeitamente em seu cânome: “Na trilha sonora, ouvimos uma gravação de 1901 da Ave Maria de [Charles] Gounod [(1818–1893)], cantada pelo último castrato do Vaticano, o que cria uma sensação estranha, quase um êxtase, e estabelece um contraponto poderoso entre música e imagens. (...) Isso significa que o filme não é um documentário sobre uma tribo africana específica, mas uma história sobre beleza e desejo. Sem a música, as imagens desse concurso de beleza masculina incrível e bizarro só não nos tocaria tão profundamente”. 8


Concentração antes do êxtase

Na época, houve certa polêmica sobre o uso de música “branca ocidental” como trilha específica para uma tribo africana ameaçada. Mas o diretor se defende com firmeza: “De outra forma, meu filme jamais teria existido. Queria usar a Ave Maria toda vez que filmei os close-ups dos wodaabes. Ninguém mais faria tal coisa. Gosto muito do filme. Cria um êxtase estranho”. 9

O filme tem ritmo bem rápido, a despeito de as sequências não serem muito lineares ou narrativas, e pouca coisa tem mais impacto que a brilhante sequência inicial, mas há vários momentos muito bonitos, como os diálogos apreensivos dos homens antes e depois do ritual, a conversa de Herzog com um casal envergonhado que passou a noite junto ou o jeito extremamente tímido como a mulher aponta para o homem escolhido.

Mas, no geral, é um filme para quem é fã do diretor ou tem interesse no tema, ainda que ele não seja tão bem desenvolvido assim. Porém, vale mencionar também a impactante sequência final, de puro pessimismo herzogiano, em que dromedários cruzam uma ponte cheia de gente e carros sobre o Rio Níger: junção de modernidade e antiguidade, com a inevitável degeneração desta, inevitável e desoladora.

Herzog explica um pouco a cena: “Simplesmente aconteceu de eu ver os dromedários sendo conduzidos através da ponte no meio de todos aqueles carros. Para mim esse é uma cena de verdadeira profundidade e beleza.” 10

Tem no YouTube, com legendas em inglês; veja pelo menos a sequência inicial, para ser inundado brevemente pelo êxtase herzogiano. Tornar-se brevemente um pastor do sol, seguindo os acasos e descasos da existência, porém, sempre com dignidade.



Curiosidades:

– estima-se que os wodaabes hoje sejam em torno de 10 mil;

– o “último castrato do Vaticano” citado por Herzog é o italiano Alessandro Moreschi (1858–1922), que também é o único castrato a ter registros musicais gravados;

– o compositor francês Charles Gounod compôs criou Ave Maria de modo à sua melodia se sobrepor ao Prelúdio Nº 1 Em Dó Maior, d’O Cravo Bem Temperado, de Bach, escrito 137 anos antes;

– entre Cobra Verde e este Wodaabe, Die Hirten Der Sonne, Herzog dirigiu, em 1988, o episódio Les Gaulois (12min) da série de curtas-metragens Les Français Vus Par..., do Le Figaro Magazine (só achei com áudio em francês, então não posso opinar sobre).



1 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
2 CARTE, Erica. Werner Herzog, African Sublime. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.
3 4 AMES, Eric. Ferocious Reality: Documentary According To Werner Herzog. University Of Minnesota Press, 2012.
5 8 10 HERZOG, Werner. In Werner Herzog: A Guide For The Perplexed, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2014.
6 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
7 http://www.nytimes.com/movie/review?res=9D0CE1DD1E30F93BA35756C0A967958260
9 HERZOG, Werner. In: Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

(1987) Cobra Verde



Alemanha (rodado no Brasil, em Gana e na Colômbia) | 110min | 35 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog, a partir do romance O Vice-Rei De Ouidá, de Bruce Chatwin
Direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Haymo Henry Heyder
Montagem: Maximiliane Mainka
Fotografia: Victor Ruzicka
Música: Florian Fricke (Popol Vuh)
Elenco: Klaus Kinski (Francisco Manoel da Silva / Cobra Verde), King Ampaw (Taparica), José Lewgoy (Don Octavio Coutinho), Salvatore Basile (Capitão Fraternidade), Peter Berling (Bernabé), Guillermo Coronel (Euclides), Nana Agyefi Kwame II (Bossa Ahadee), Yolanda García (Dona Epiphania), Nana Fedu Abodo (Yovogan), Kofi Yerenkyi (Bakoko), Kwesi Fase (Kankpe), Benito Stefanelli (Capitão Pedro Vicente), Kofi Bryan (Mensageiro de Bossa Ahadee), Carlos Mayolo (Governador da Bahia)

Assistindo a Cobra Verde você sente às vezes que o Sr. Herzog, como um personagem de Joseph Conrad, está em risco de perder o seu caminho, ou até mesmo sua sanidade. Seu olhar, no entanto, nunca o abandona, e o terço final do filme contém sequências de sublimidade terrível e beleza etérea, momentos que têm uma clareza e um poder além do alcance da razão.” ¹

Eu já tinha assistido a Cobra Verde havia dez anos, e não havia curtido nem um pouco. Cheguei a citar, em outro capítulo desta #MaratonaHerzog, que era o pior filme do alemão que eu tinha visto. Porém, com a experiência de ver e estudar todos esses filmes, achei que minha opinião sobre tal obra poderia mudar, por que não?

Esta, que é a quinta e última colaboração entre Herzog e Klaus Kinski, é uma adaptação bem livre do romance histórico O Vice-Rei De Ouidá, do escritor inglês Bruce Chatwin (1949–1989), que, por sua vez, se inspirou vagamente na vida de um comerciante brasileiro de escravos, Francisco Felix de Souza, que se tornou poderoso em Ouidah, na Costa Oeste da África (onde hoje estão Benin, Togo e parte de Gana).

A história do filme, tal como em Fitzcarraldo, é bastante rocambolesca para os padrões herzogianos: Francisco Manoel da Silva é um camponês no sertão nordestino que mata o dono da mina onde trabalhava por falta de pagamento; torna-se o bandido Cobra Verde, espécie de cangaceiro solitário, e passa a aterrorizar os vilarejos da região, até que, ao impedir a fuga de um escravo do senhor de engenho Dom Octavio Coutinho, é contratado por este, para supervisionar sua plantação de cana; porém, acaba por engravidar as três filhas do patrão; como castigo, um destino (teoricamente) pior que a morte – buscar escravos africanos já na época da repressão britânica; lá, ele consegue os escravizados, mas acaba condenado à morte, para então ser libertado pelo irmão do rei, para ajudá-lo em uma insurreição, até que o novo soberano lhe envia um último carregamento de escravos aleijados, enquanto no Brasil finalmente se proíbe a escravatura.


Kinski, solitário e soturno

De outro diretor, se imaginaria que fosse um épico com mais de três horas, cheio de ação, drama violência, certo? Certo, mas, sendo um filme de Herzog, e, mais do que isso, sendo um filme oitentista dele, dá para saber o que temos aqui: uma história complexa, ainda que convencional, inspirada em agruras tribais, com resolução desinteressada, que passa de um acontecimento ao outro sem muita paciência ou vontade de continuar o que propôs. Isso torna o filme episódico, de modo ainda mais incômodo que em Wo Die Grünen Ameisen Träumen.

As cenas se sucedem sem nenhum encadeamento temporal visível. Dá para perceber que é linear, mas o quanto? Entre uma cena e outra podem passam dias, horas, semanas, meses? Não há como saber: em uma cena, Cobra Verde está coberto de sujeira; na seguinte, está tomando chá na varanda; em outra, está prestes a ser decapitado, para, duas cenas depois, já estar liderando um exército de amazonas.

Em um filme herzogiano clássico, setentista, talvez isso não incomodasse, mas com a trama apresentada, teoricamente com começo meio e fim, isso desanima um tanto, dá a impressão de que tanto faz o filme acabar naquele momento ou durar mais umas três horas, já que roteirista, diretor e montador, aparentemente, resolveram largar mão dos planos e simplesmente improvisar.

Justiça seja feita: as imagens são belíssimas – deve ser o visual mais estonteante desde Fata Morgana – e, obviamente, Herzog não está nem um pouco interessado em discutir a moralidade da escravatura, tanto quanto em problematizar demais aspectos narrativos da história; seu interesse está sempre em usar coisas, pessoas, paisagens e até a si mesmo, dependendo do filme, como palco para sua verdade extática.

E, de fato, há muitas cenas de tirar o fôlego em Cobra Verde, com as paisagens selvagens e exuberantes da África, todas elas emolduradas pela sempre excelente trilha do Popol Vuh velho de guerra.


Beleza ameaçadora

Klaus Kinski surge exausto como em Woyzeck, mas não pelo papel pedir isso, e sim por uma possível falta de inspiração ou de vontade mesmo. Aparentemente Herzog não conseguiu mais encontrar novos aspectos do ator que pudessem ser explorados para sua obra.

Herzog ressalta: “Quando Kinski chegou para a primeira parte do filme na Colômbia ele estava caindo aos pedaços. Juntá-lo e torná-lo produtivo, para aproveitar toda a sua loucura, sua raiva e sua intensidade demoníaca foi um problema real desde o primeiro dia. Kinski era como um cavalo de corrida híbrido correria mais de uma milha, para, depois da linha de chegada, entrar em colapso”. ²

Também contribuiu muito para isso o fato de Kinski estar obcecado em filmar seu roteiro de Paganini (lançado em 1989), tendo inclusive insistido, durante anos, para que Herzog o filmasse (segundo ele, o roteiro consistia em “meia página de sexo, então meia página de violino, e assim por seiscentas páginas”). ³

Segundo o estudioso inglês de cinema alemão Lance Duerfarhd, “Cobra Verde transfigura a natureza da luta entre Kinski e Herzog. (...) Em vez de uma luta sobre o modelo dentro do filme, Cobra Verde mostra a luta que tem seu lugar entre dois filmes, entre um sendo produzido e outro por vir. De alguma forma, citando sua própria presença em um filme que ainda estava por vir, Kinski desfaz Cobra Verde. O filme dá a Kinski a oportunidade de recusar sua recusa, e parece seguir em frente com seu projeto Paganini, com Herzog de diretor, justamente como ele pretendia". 4

O próprio Herzog concorda: “Há algo com sua presença no filme, e a presença de um filme que não havia sido rodado ainda, que era Paganini. Ele estava em um filme diferente, trouxe algum clima para meu filme que não pertencia a ele, e até hoje tenho algumas dificuldades com certas partes do filme". 5

A relação pessoal entre diretor e ator também havia chegado ao limite: “A produção foi, simplesmente, a pior na minha vida e jurei publicamente depois de filmar que eu jamais voltaria a trabalhar com Kinski. Na época, eu pensei comigo mesmo: 'Será que alguém por favor pode entrar e continuar o trabalho com este homem? Eu já tive o suficiente.' Havia algo sobre a presença de Kinski no filme que significava um mau cheiro estranho ao filme - seu mau cheiro – que permeou o trabalho que fizemos juntos lá, e Cobra Verde sofre um tanto por causa disso”. 6

A relação com a equipe também nunca fora tão ruim, mesmo para os padrões kinskianos: “A cada dia eu não sabia se o filme seria concluído porque Kinski aterrorizou todos no set. Ele iria parar de filmar, mesmo se um dos botões no seu traje estivesse muito solto. Na verdade, ele aterrorizou o diretor de fotografia Thomas Mauch [antigo colaborador de Herzog] e eu tive que substituí-lo na primeira semana. Esta foi uma das piores coisas que eu já fiz na minha vida. Thomas amou o filme, mas, infelizmente, sentiu o peso de Kinski no início da batalha. Eu escolhi o seu substituto, o tcheco Victor Ruzicka [1943-2014], porque eu tinha ouvido falar que ele era fisicamente forte, constituição de camponês, e muito paciente. Qualquer outra pessoa provavelmente teria saído dentro de duas horas”. 7

Somando tudo isso ao fato já mencionado de que Kinski não estava bem sequer consigo mesmo, só poderia desaguar em um filme fraco. Ainda mais que o resto do elenco não tem peso o bastante para levar a produção a cabo: exceto por José Lewgoy (1920-2003), que, mesmo aparecendo pouco, é sempre alentador, o resto do numeroso plantel vai e vem meio indistintamente, sem profundidade, sem gerar empatia ou interesse.


Kinski e seu semblante cansado

Cobra Verde também desagradou muita gente por não ser crítico à escravidão ou mesmo tentar contextualizá-lo de alguma forma, e sim apenas mostrá-la como parte (central, aliás) da história que pretendia contar (parece que Herzog nessa época desagradou quando foi panfletário e quando não foi, vide Wo Die Grünen Ameisen Träumen e Ballade Vom Kleinen Soldaten).

Isso pareceu irritá-lo, dadas algumas de suas declarações sobre a polêmica: “Herzog afirma que o filme foi deliberadamente feito para não ser uma declaração sobre a moralidade do tráfico de escravos: ‘O filme nunca denuncia a escravidão. Funciona dentro do clima e do pensamento daquele tempo... isso, claro, é até certo ponto politicamente incorreto. Mas e daí? Não tenho nenhum problema com isso’”. 8Não, o filme não é sobre a história do colonialismo, como o romance de Chatwin também não é. E eu não o considero um filme histórico, assim como eu nunca vi Aguirre... como sendo, de qualquer forma, histórico. (...) Cobra Verde é sobre grandes fantasias e loucuras do espírito humano, não sobre colonialismo”. 9O fato é que, em Gana, onde filmamos, a escravidão ainda é uma espécie de tabu, ao contrário do colonialismo. Nos Estados Unidos e no Caribe há muito debate sobre a escravidão, no Brasil também, mas em muitos lugares na África a ferida da escravidão é tão profunda e dolorosa que quase ninguém fala sobre isso em público. É um assunto quase intocado. Eu sempre suspeitei que uma das razões para isso é o fato bem estabelecido de que reinos africanos estavam envolvidos no tráfico de escravos, quase tanto quanto os comerciantes brancos. Houve também uma grande quantidade de comércio de escravos entre o mundo árabe e África negra, e mesmo dentro das próprias nações africanas". 10

Sobre a própria locação principal do filme, o diretor afirma: “A África sempre me atraiu, mas de forma diferente de Hemingway. Nunca me senti atraído pelo fascínio nostálgico do Kilimanjaro ou dos safáris, mas sim pelo fato de ser um continente cheio de mistérios. Claro que todas as vezes em que fui lá acabaram mal, com a possível exceção da filmagem de Cobra Verde. Normalmente o que acontecia era que eu adoecia, ou era preso, coisas assim”. 11

Escravidão

Aí vem a pergunta: mas o filme é tão ruim assim mesmo? Olha, embora tenha cenas belíssimas, e várias sequências de impacto – incluindo o amargo final – e seja perfeitamente inserido no cânone herzogiano (não há nenhuma grande ruptura, pelo contrário, é uma continuação normal do trabalho dele a época), Cobra Verde parece tão cansado, amargo e desconfortável quanto seu protagonista.

O protagonista é um óbvio anti-herói herzogiano, com uma amargura que se deixa entrever esperança e desengano na mesma medida, em meio à natureza igualmente bela e hostil, sendo um peão em lutas de poder muito maiores do que ele. A jornada de Cobra Verde é uma grande peregrinação a um lugar qualquer que lhe sirva.

Porém, no final, o que resta e lutar inutilmente contra a maré inexorável, empurrando o pesado barco que não cede. Não adianta fugir, tudo é em vão, somos prisioneiros em nossa existência na natureza hostil e indiferente. Tanto a ele quanto ao escravo com poliomielite que some, manquitolando, no horizonte.

Como diz a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli: “É como se o olhar, sublinhando as preocupações claustrofóbicas do protagonista, tivesse decidido se encerrar no breve espaço entre o forte e o mar, com o olhar sempre voltado para um regresso impossível. Na cena final, Cobra Verde, perdido tudo e perdido o poder, não consegue sequer mover o barco, com o qual poderia lançar-se ao mar. A ele, que subverteu as regras de todos os lugares onde esteve, nem sequer lhe é concedido perder-se na paisagem imensa do oceano”. 12

De fato, a cena final impressiona, como fez ao próprio diretor, sinalizando que aquele também era o esforço artístico final de Klaus Kinski na filmografia que ambos construíram: “Houve momentos em Cobra Verde dos quais nunca vou esquecer. A cena final em que ele tenta empurrar o barco para o oceano está cheio de tanto desespero, e Kinski é magnífico enquanto cai na água. Mas eu sabia era o momento em que poderíamos ir mais longe no filme, e eu disse isso a ele. Não havia nada que eu gostaria de ter descoberto com ele além do que eu já tinha descoberto nesses cinco filmes. Ele tinha certas qualidades que senti e que nós exploramos juntos, mas qualquer coisa além de Cobra Verde teria sido repetição”. (...) “A cena final de Cobra Verde foi o último dia de filmagem que nós fizemos juntos na vida. Ele tinha posto tanta intensidade nessa cena final que ele simplesmente se desfez depois. Mesmo no momento ambos percebemos isso, e ele mesmo me disse: 'Não podemos ir mais longe. Eu não sou mais". 13



Klaus Kinski e seu inútil esforço final


Mas, mesmo com essa contextualização, o ‘todo’ não funciona, fazendo deste um dos piores herzogs que vi, junto com Herz Aus Glas, Huie’s Sermon e How Much Wood Would A Woodchuck Chuck. A década de 1980 segue não muito auspiciosa para o diretor alemão. Porém, a #MaratonaHerzog segue.


Curiosidades:

– o papel do Rei Bossa Ahadee de Dahomey é interpretado por um ‘rei’ de verdade o omanhene (espécie de governante tribal) de Nsein, um vilarejo ganês, e sua corte, de aproximadamente 300 pessoas, foi usada como arte da figuração do filme, improvisadamente;

– outra figuração utilizada de improviso foi a dos guerreiros da tribo Bolgatanga, que aparecem na praia quando da chegada de Cobra Verde;

– para a reconstrução da residência real, especialmente as caveiras cenográficas, a produção contrabandeou gesso da Costa do Marfim, onde estava sendo erigida uma grande catedral;

–  Herzog conta uma das curiosidades/dificuldades com as mulheres do exército de amazonas: “Outra vez tivemos que alinhá-las no pátio interior da fortaleza dos escravos para pagá-las. Nós abrimos apenas uma pequena passagem através da porta principal, o que significava que elas saíram uma após a outra, caso contrário, teriam caído sobre o dinheiro. O que aconteceu foi que 800 delas forçaram a porta ao mesmo tempo e foram esmagando as que estavam na frente, quase até a morte. Algumas desmaiaram, e eu só dissipei a situação puxando um policial próximo e fazendo com que ele disparasse três tiros para o ar, fazendo-as recuar”; 14

– originalmente, o filme seria lançado nos EUA pela De Laurentiis Entertainment Group, o que certamente garantiria ampla distribuição, mas, com a falência da empresa, o filme nem passou nos cinemas de lá, e só foi distribuído direto em vídeo, em 2000, pela Anchor Bay;

– Sobre a frase final do filme (“Os escravos venderão os seus senhores e lhes crescerão asas”), Herzog diz: “Não sei se encontrei essa citação no livro de Chatwin ou se foi produto da minha imaginação. Provavelmente não está no livro”. 15

– Herzog e Chatwin se admiravam mutuamente e foram amigos desde que se conheceram, em 1984, até a morte deste, em 1989. Chatwin dizia sempre levar consigo uma cópia de Caminhando No Gelo, livro do alemão [mais sobre ele aqui];

– Segundo Chatwin, na mesma época em que Herzog decidiu filmar O Vice-Rei De Ouidá, David Bowie manifestou também manifestou interesse nos direitos do livro;

– no livro, Cobra Verde e Francisco Manoel da Silva são pessoas diferentes, e o primeiro aparece pouco na narrativa – Herzog optou por torná-los uma pessoa só no filme;

– sobre essa que foi a quinta e última parceria com Kinski, Herzog complementa: “Ele morreu em 1991 em sua casa ao norte de San Francisco. Ele tinha acabado queimar a si mesmo como um cometa. Como eu, Kinski era uma pessoa muito física, mas de uma maneira diferente. Nós complementamos bem um aos outro, porque ele fizemos tudo juntos. Ele atraiu o rebanho magneticamente e eu segurei-o junto. Kinski foi feito para mim, para o meu cinema. Às vezes eu quero colocar meu braço em torno dele novamente, mas eu acho que eu só sonho com isso porque eu já vi isso em imagens antigas dos dois de nós. Não me arrependo de nenhum momento, nenhum. Talvez sinta falta dele. Sim, agora e depois eu sentirei falta dele”; 16

– a relação com Kinski futuramente retornará a esta #MaratonaHerzog com o documentário
Mein Liebster Fiend (1999), especificamente sobre isso;

– quanto ao Paganini de Klaus Kinski, que é mesmo tão ruim quando parece, tem uma crítica bem legal aqui;

– o cineasta suiço Steff Gruber (1953–) acompanhou as filmagens de Cobra Verde e fez um documentário, Location Africa (1987), sobre isso. Herzog, aparentemente, não curtiu muito: “Não gosto nada dele porque o cineasta se afastou de sua ideia original de forma a se concentrar na sua experiência pessoal, em como se apaixonou por uma moça africana, uma das figurantes, e não gosto do tom do filme, da sua atmosfera, ou da forma como me acusa de nada saber acerca das mulheres africanas escolhidas para desempenhar o papel do exército de amazonas. Claro que se precisamos dirigir 800 figurantes e obter um resultado, se temos que treiná-los num campo de futebol, com um coordenador de figurantes italiano, sob pressão porque o tempo é escasso, é claro que não teremos tempo de estudar profundamente suas origens sociais. Claro que não percebi a totalidade de suas situações! Gostei delas e se deram bem comigo. (...) Não gosto do tom de queixinhas desse filme. Não interessa se alguém me descreve de modo negativo, façam-no à vontade, isso não me incomoda, mas não gosto é da atmosfera de queixume constante que inunda o filme”. 17

– A banda de death metal norueguesa radicada na Itália Hideous Divinity lançou em 2014 um álbum conceitual sobre Cobra Verde.


¹ http://www.nytimes.com/2007/03/23/movies/23cobr.html?_r=0
2 3 5 6 7 9 10 13 14 16 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
4 DUERFAHRD, Lance. The Friendship Of Klaus Kinski And Werner Herzog. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.
8 Herzog, Werner. Comentário do diretor no DVD de Cobra Verde. In: The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
11 12 15 17 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.

domingo, 29 de maio de 2016

(1986) Werner Herzog: Filmemacher

Alemanha | 30min | 16 mm |cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Christine Ebenberger
Montagem: Maximiliane Mainka
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: Popol Vuh
Elenco: imagens de arquivo de
Werner Herzog, Reinhold Messner, Lotte Eisner, Paul Hittscher, Mick Jagger, Klaus Kinski, Thomas Mauch, Beat Presser, Jason Robards, Walter Saxer, Franz Josef Strauß


Um autorretrato que lida com o seu desenvolvimento artístico e abordagens sobre cinema, artesanato, paisagens, locais, língua, inocência, improvisação, expressão poética, assunção de riscos, música, miragens, roteiro, relação com desastres, condicionamento cultural, determinação, obsessões visões sobre diferentes tipos de filmes e sua preocupação com estéticas.” ¹

Também conhecido como ‘Portrait Werner Herzog’, este é um adorável curta-metragem autobiográfico, como já citado acima, em que o diretor, sempre naquele tom tranquilo/melancólico, conta histórias sobre sua vida e sua carreira até então (já respeitabilíssima, com reconhecimento mundial e 27 filmes em 24 anos).

Temos Herzog na Oktoberfest em Munique, reunido com amigos do ramo cinematográfico, toda aquela ‘riqueza cultural’, etc., etc., muita festa & alegria, só para dizer que ‘odeia multidões’ – e corta para sua caminhada solitária pelos montes bávaros (“Sou o tipo de pessoa que viaja a pé, mesmo por longas distâncias”).
Cineasta & solitude

Temos uma rápida explicação sobre sua epopeia Caminhando No Gelo, e como toda sua obra é feita ‘a pé’, sempre dura e presencialmente, sentindo tudo e participando de todos os extremos, e então há uma preciosa sequência de arquivo em que Herzog o montanhista Reinhold Messner, de Gasherbrum – Der Leuchtende Berg, discute um futuro filme, que nunca houve, envolvendo Klaus Kinski (1926-1991) e o Himalaia.

Mais um pouco de solidão nos vales, onde Herzog medita sobre sua obra e gosta de escrever prosa, poesia e roteiros, e temos uma explicação mais detalhada sobre Caminhando No Gelo, para que seja introduzida sua entrevista/conversa com a amiga e crítica franco-alemã de cinema Lotte Eisner (1896–1983), em que ela fala de seu encantamento com Lebenszeichen.

Das belas sequências desse sensível filme, conectadas as paisagens oníricas de Herz Aus Glas, o selvagem verdejante de Aguirre, Der Zorn Gottes e a vastidão desértica de Fata Morgana, Herzog, alertado por Lotte Eisner, nota que eles tinham ligação com o romantismo alemão, notadamente as vastas e melancólicas paisagens do pintor Caspar David Friedrich (1774–1840).

Essa ideia de pertencimento à genealogia da arte alemã, especialmente retomando a linha evolutiva do cinema interrompida pelo nazismo, surgiu no diretor à época de Nosferatu, e Herzog a retoma neste momento, falando também sobre como foi crescer na Alemanha do pós-Guerra.

Falando sobre sua infância nas paisagens bávaras, o alemão conta seu sonho de criança: ser um atleta de saltos de ski, um ski-jumper; sonho deixado para trás após o trauma da morte de um amigo. E isso explica a realização de Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner: ainda querer ser como Walter Steiner.

Corta para uma viagem de carro por planícies britânicas, com Herzog se indagando sobre as dificuldades de erguer aqueles dólmens e menires celtas à Stonehenge, só para chegarmos nos titânicos desafios de Fitzcarraldo, mostrados em cenas de Burden Of Dreams.

No final, enquanto vemos fotos de tantos outros filmes-desafios, todos eles vividos na pele por Herzog, com sua equipe, não podemos deixar de duvidar de suas palavras finais: "Aqui podemos ver realmente como é difícil fazer um filme; mas esta é a minha vida, e não quero vivê-la de nenhuma outra forma".


Curiosidades:

- tem grátis no YouTube; qualidade razoável, dá pra ver:

- sobre Burden Of Dreams e Caminhando No Gelo, ver o post sobre Fitzcarraldo.


sábado, 28 de maio de 2016

(1984) Wo Die Grünen Ameisen Träumen

Alemanha (Austrália) | 100min | 35 mm |cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Claus Langer
Montagem: Maximiliane Mainka
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Gabriel Fauré, Ernst Bloch, Richard Wagner, Klaus-Jochen Wiese e música tradicional aborígene de Wandjuk Marika
Elenco: Bruce Spence (Lance Hackett), Wandjuk Marika (Miliritbi), Roy Marika (Dayipu), Ray Barrett (Cole), Norman Kaye (Baldwin Ferguson), Ralph Cotterill (Fletcher) Nick Lathouris (Arnold), Basil Clarke (Judge Blackburn), Ray Marshall (Coulthard), Gary Williams (Watson), Tony Llewellyn-Jones (Fitzsimmons)
            

 Há certo consenso sobre a década de 1980 ser a menos inspirada de Herzog (apesar de Fitzcarraldo, ou especialmente por causa dele), devido à indefinição entre abraçar o mainstream e manter seu caráter independente. E isso fica escancarado, mais do que eu qualquer outra realização do período, neste Wo Die Grünen Ameisen Träumen (Onde Sonham As Formigas Verdes).

Nas palavras do estudioso alemão de cinema Thomas Elsaesser (1943–): “Em seu primeiro filme rodado totalmente em inglês, é certamente consciente do desafio de se dirigir a dois tipos de audiência: uma para quem um roteiro bem construído é uma traição ao cinema, e outra para quem um filme sem isso não é realmente cinema”. ¹


Ordem no caos primordial

A história toda, interessante, até, é apresentada em menos de dez minutos: uma grande mineradora pretende explorar urânio no deserto australiano, mas encontra a oposição de uma tribo aborígene, que considera aquela terra sagrada, por ser onde moram e sonham as sagradas formigas verdes do título do filme; um dos geólogos se compadece da causa dos indígenas, e se vê no meio dessa disputa entre brancos e negros, passado e presente, civilização e natureza [que vai parar nos tribunais].

O próprio Herzog parece não muito interessado na narrativa convencional, nota
Elsaesser: “uma falta de interesse na causalidade, por exemplo, é evidenciada no modo como ele maneja as transições de frame para frame, assim como de cena a cena. Em vez de uma narrativa construída com sequência dramáticas, Herzog trabalha em unidades isoladas. O corte é meramente um jeito de buscar outro bloco situacional, para se mover de outro espaço ou até outro espaço”. ²

Além de essa história ser toda apresentada de uma vez, sem mistérios ou reviravoltas, e de os núcleos de personagens irem e virem de forma desinteressante, há o problema de os personagens serem todos esquemáticos: temos os homens brancos de negócios, sempre insensíveis e cartesianos, incluindo um racista operador de escavadeira; os aborígenes, que, exceto por um ex-piloto de avião, alcoólatra, são todos naquele esquema de “sabedoria meio silenciosa e pura dos povos antigos”; e, no meio disso, Lance Hackett, o geógrafo que simboliza a ponte impossível entre esses dois mundos.



Obstinação

Indecisão

Para o crítico norte-americano de cinema Vincent Canby (1924–2000), “Herzog lida com essa narrativa de forma eficiente, mas quase com relutância, como se ele não pudesse se importar menos sobre o que acontece em seguida. Suas principais preocupações são muito mais místicas, e, às vezes, tão conscientemente distorcidas que ele parece estar dizendo que qualquer interpretação específica dos eventos seria um desserviço para o santo mistério da própria vida”. ³

Dá certa frustração o modo como Herzog, de certa forma, estraga a própria ideia de filme, sem levá-la a fundo e, nenhum momento, e deixando tudo correr de forma frouxa – coisa que não funciona bem aqui, uma vez que, ao contrário de seus filmes típicos, se apresenta a nós uma história que promete começo, meio e fim. O filme até se desenvolve, mas por inércia, não por esforço do diretor.

Até coisas que podemos considerar como qualidade do diretor, como o interesse em cenas/personagens que não necessariamente têm a ver com o filme, mas que, uma vez lá, têm seu lugar, aqui surgem deslocadamente: o velho aborígene, último de sua tribo, considerado mudo pelos autos do processo porque sua língua não é compreendida por mais ninguém, não tem o impacto esperado; e a subtrama da senhora à procura de seu cão que teria sumido nos túneis das minas só me causou irritação. 

Outros problemas: Hackett, o geólogo virtuoso, embora simpático, não é o típico personagem hergoziano, desajustado, cheio de ira e/ou angústia, que carrega o filme e toda a existência nas costas. É o ‘herói’ da história, observa
Elsaesser, “apenas no sentido clássico e limitado de motivar o progresso da narrativa, servindo de intermediário entre as facções opostas do filme enquanto mediador das simpatias da audiência”. 4

Isso deixa a história sem protagonista: não é um filme sobre ele, nem sobre os aborígenes, nem sobre os mineradores, tampouco sobre as formigas verdes. A condução da história, dada que semidocumental, é previsível, e levada a cabo por Herzog com pouco afinco, e o final não esclarece muita coisa. Então o filme é uma porcaria completa, certo?

Vamos com calma. O crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) nos dá pistas valiosas: “Herzog disse que pensa em imagens, não ideias, e que se ele pode encontrar as imagens corretas para um filme, não fica preocupado com a sua mensagem. (...) Mas há uma realidade, no entanto, nesse filme estranho, e ela sai dos dois conjuntos conflitantes de crenças”. 5

Pode-se dizer que temos aqui o motivo herzogiano da natureza primordial, em seu caos tão bem ordenado (representada pelos aborígenes), a ser corrompida pela presença humana, no caso branca e ocidentalizada. O contato com esse ambiente selvagem, inóspito, impenetrável para nosso conhecimento, leva à inexorável entropia, à degeneração, à ruína. São modelos inconciliáveis, que, ao se tocarem, geram apenas desequilíbrio – as sagradas formigas que deixam de sonha tudo que existe –

Nisso temos claro parentesco com Fata Morgana: o filme começa e termina com imagens hipnóticas de um redemoinho tempestuoso de areia no deserto; as formigas verdes sonham o mundo e então deixam de sonhá-lo, ou vão sonhá-lo em outra parte. Representam uma existência perdida no tempo, da humanidade sem passando, sem rumo, sem memória. Degeneração – e a placidez do nada-haver vai se instalar em outro lugar, distante daquelas pessoas tão preocupados com a materialidade do presente, para restaurar seu equilíbrio de assombro e indiferença.


Ecos de Fata Morgana

Como decreta Vincent Canby, sobre o filme: “Como narrativa convencional, é extremamente simples e bastante descuidado, mas nunca simplório, sendo repleto de momentos de loucura inspirada e sabedoria. (...) Outro capítulo fascinante, às vezes enlouquecedor, em sua contínua obsessão com o destino da Terra e o de si mesmo”. 6

Uma chave para o entendimento sobre o filme vem da fala de um dos aborígenes: “Vocês homens brancos estão perdidos. Vocês não compreendem a terra. Muitas questões tolas. Sua presença nesta terra chegará ao fim. Vocês não têm nem senso, nem propósito, nem direção”.

Pode-se dizer, enfim, que não é um filme estranho à filmografia do diretor – embora um filme não devesse depender de contexto para ser bom, e este, analisado isoladamente, é fraco, irregular –, mas, como já dito, patina nessa indefinição entre a convenção e a experimentação, não sendo satisfatório para nenhuma das duas audiências.

O próprio Herzog não tem o filme em sua mais alta conta: “Bem, o filme é bastante óbvio em ter algum tipo de ‘mensagem’. Ele tem um tom tão hipócrita que eu gostaria de ter cortado do filme, ele cheira mal. (...) O filme não é de todo ruim, só tem um clima que eu não suporto. Ainda gosto das sequências do início e do final, as imagens como se viessem do fim do mundo”. 7

De fato, as sequências desérticas, que remetem ao magnífico Fata Morgana, são o que há de melhor no filme. Mas aguardemos que esse glacê ‘de protesto’ um tanto simplório tenha ficado inteiramente neste filme e em Ballade Vom Kleinen Soldaten e os pequenos apocalipses herzogianos do dia a dia retornem nos próximos capítulos da #MaratonaHerzog.



Curiosidades:

– o filme venceu o German Film Awards de 1984 nas categorias ‘melhor filme’ e ‘melhor fotografia’;

– Herzog faz uma ponta não creditada como um dos advogados da cena do julgamento;

– toda a lenda das formigas verdes foi inventada por Herzog, e aparentemente não há nada parecido com isso no folclore aborígene;

– sobre próprio o conceito aborígene de ‘sonho’, Herzog afirma: “tenho que ter cuidado quando se discute conceitos como ‘sonho’, porque não sou especialista. (...) Algo como 20.000 anos de história nos separa deles. (...) Meu entendimento muito limitado é que as histórias oníricas aborígenes e seus mitos explicam as origens de tudo no planeta e foram especialmente importantes para os indígenas pré-coloniais. Posso dizer que o filme não é certamente o ‘sonho’ deles, é o meu”; 8

– apesar disso, no nordeste da Austrália realmente existem formigas verdes endêmicas, as Rhytidoponera metallica, chamadas de green-head ants (não se sabe sabe se elas sonham);

–a história do artefato secreto apresentado na corte é baseada em um incidente verídico;

– a disputa ‘indústria x aborígenes’ foi inspirada em um caso real dos 1970s, em que uma empresa suíça de extração de bauxita disputou (e venceu na Justiça) o terreno da mineração com os locais, a tribo Yolngu; 

– a crítica em geral achou que o filme ficou desconfortavelmente colocado entre a ficção e o documentário, e o jornalista australiano Phillip Adams, particularmente irritado, reclamou que o filme deixava implícito que o governo do país estava contra os aborígenes e fez até um artigo chamado Dammit Herzog, You Are A Liar!;

– o filme é dedicado à mãe de Herzog, que morreu quando o filme estava em andamento;

– o diretor de fotografia Jörg Schmidt-Reitwein passou quatro semanas em Oklahoma apenas para perseguir tornados para as sequências inicial e final;

– dois nomes de personagens do filme, ‘Baldwin Ferguson’ e ‘Miss Strehlow’, têm a ver com antropólogos pioneiros no estudo do aboríneges, respectivamente Baldwin Spencer (1860–1929) e Theodor George Henry Strehlow (1908–1978);

– além do pagamento em dinheiro, os aborígenes pediram pagamento em fitas de kung fu, as quais eram sempre vistas, em grupo, após a jornada diária de filmagem;

– sobre a história paralela de Miss Strehlow, que procura paciente e obstinadamente seu cão perdido, Herzog diz, nos comentários do DVD do filme: “Não tinha nada a ver com o enredo central; mas, às vezes, eu não sei como isso acontece, histórias como essa, sobre um cão perdido, subitamente se tornam mais importantes que o começo de um filme normal”.



¹ ² 4 ELSAESSER, Thomas. An Anthropologist's Eye: Where The Green Ants Dream. In: The Films Of Werner Herzog: Between Mirage And History, de Timothy Corrigan. Methuen, 1986.
3 6 http://www.nytimes.com/1985/02/08/movies/where-the-green-ants-dream.html
5 http://www.rogerebert.com/reviews/where-the-green-ants-dream-1984
7 8 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.

quarta-feira, 23 de março de 2016

(1984) Gasherbrum – Der Leuchtende Berg



Alemanha (Paquistão) | 45min | 16 mm |cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Lucki Stipetić
Som: Christine Ebernberger
Montagem: Maximiliane Mainka
Fotografia: Rainer Klausmann
Música: Florian Fickle (Popol Vuh)
Elenco: Reinhold Messner e Hans Kammerlander

“The Dark Glow Of The Mountains [título internacional do filme] veio de questões que eu estava fazendo a mim mesmo. Por que Messner – um homem que perdeu seu irmão durante uma expedição – sente a necessidade de escalar Nanga Parbat [montanha no Paquistão] uma segunda vez? O que motiva um homem como esse? Um vez perguntei a ele, ‘Você não se sente meio perturbado por continuar a escalar montanhas?’. ‘Toda pessoa criativa é insana’, ele me disse. (...) Uma vez ele me disse que ele era incapaz de descrever a sensação de que o obriga a subir mais do que ele poderia explicar o que o obriga a viver.” ¹

Este média-metragem é um perfil do conhecido montanhista Reinhold Messner, prestes a escalar a montanha Gasherbrum (‘A Montanha Luminosa’ do título original), no Himalaia, com seu amigo Hans Kammerlander (também um célebre escalador). 

Reinhold Messner

Entre conversas sobre detalhes técnicos da empreitada (embora o filme nem se preocupe muito com isso, obviamente), Herzog procura entender o que leva alguém a uma jornada tão extrema e perigosa, ainda mais considerando que Messner havia perdido o irmão durante uma escalada na montanha Nanga Parbat.

Não é preciso pensar muito para perceber os paralelos com o protagonista de Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner: ambos são heróis herzogianos obstinados e quixotescos, bem-sucedidos no que fazem, porém, melancólicos e introspectivos quando olhados mais de perto.

Não é difícil simpatizar com o boa-gente e simples Messner, que, entre frases de efeito como “A arte e a criatividade também são formas de degeneração” e “A pergunta não existe porque todo meu ser é a resposta”, fala sobre vício em adrenalina, em superar limites, necessidade de solidão, de conexão com a natureza, de flertar com o perigo e a morte – muitas respostas para o que parece não poder ser respondido. E, quando ele fala da mãe e, principalmente, do irmão, temos momentos bem emotivos.

Já as montanhas são a óbvia natureza inóspita e hostil de Werner Herzog, mas desta vez mais imponentes e monolíticas que caóticas e cruéis, diante da qual seus desafiadores não deixarão mais do que pegadas indistintas no gelo eterno. Na brancura imensa das paisagens geladas, o diretor mostra resignação diante da impermanência e da efemeridade do existir.

Imensidão

No geral, filme OK, despretensioso, mais um só para aficionados em Werner Herzog, ou talvez em montanhismo mas a película nem se aprofunda nisso,  a despeito das belas imagens sob a trilha sonora dos colaboradores de longa data do Popol Vuh.


Curiosidade:

– Quando perguntado se não havia ido muito longe no filme com os questionamentos sobre a morte do irmão de Messner, Herzog respondeu:

Messner sabia que, ao fazer o filme, que eu estaria cavando fundo para as partes intocáveis dele, e poderia fazer perguntas difíceis sobre a expedição do Himalaia, onde seu irmão morreu. Antes de começarmos o filme que eu lhe disse: 'Haverá situações em que eu irei longe. Mas você é um cara esperto, sabe como se defender’.

Foi difícil decidir se manteríamos a sequência com ele chorando no filme, mas eu finalmente liguei para ele e disse: 'Você fez esses talk-shows sem vida toda a sua vida. Agora, de repente, algo muito pessoal foi trazido à luz, você está aqui como alguém que não é apenas mais um atleta perfeito ou que conquista cada montanha com perfeição fria. É por isso que eu decidi manter a cena'. E uma vez que Messner viu a obra acabada, ficou feliz por termos ido tão longe quanto nós fomos.

O que foi difícil no início foi fazer com que ele aparecesse na câmera como ele mesmo. Então eu acordei Messner e coloquei-o frente da câmera, e imediatamente ele começou o tipo de ‘media-rap’ [?] que ele estava tão acostumado a dar. Parei a câmera imediatamente e disse: ‘Não é desse jeito que eu quero fazer um filme com você. Há sim algo de profundamente e completamente errado em continuar assim. Não um centímetro de filme será desperdiçado dessa forma. Eu preciso ver no fundo do seu coração'. Messner me olhou com cara de atordoado e ficou em silêncio a maior parte do resto do dia. À noite, ele veio até mim e disse: 'Eu acho que eu entendi’. Não haveria misericórdia para ele, como o filme em si não conhece misericórdia”. ²


¹ ² HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.