terça-feira, 19 de maio de 2015

(1980) Huie’s Sermon

Alemanha (filmado nos EUA) | 43min | 16 mm |cor
Roteiro, produção e direção: Werner Herzog
Som: Walter Saxer
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Thomas Mauch
Música: excertos de Fiedelquartett Tele, Rudolf Obruca, Benedetto Marcello e Antonio Vivaldi
Elenco: Huie L. Rogers


Bem no meio do Brooklyn, na periferia de Nova York, um bispo negro prega a glória de Deus na Terra, e parece mais um rolling stone do que um homem de batina.” ¹

Lançado no mesmo ano que God’s Angry Man – ambos enquanto Herzog esperava a pré-produção de Fitzcarraldo –, Huie’s Sermon consiste em 40min de sermão intenso, apaixonado e catártico de Huie L. Rogers, bispo da Bible Way Church of Our Lord Jesus Christ, no Brooklyn.

O filme tem poucas mudanças de plano – basicamente, é a câmera estática contemplando o sermão de Huie, que começa tranquilo, porém segue num crescendo até atingir momentos quase hipnóticos, com gritos, cantoria, palmas e palavras de ordem repetidas.

O especialista norte-americano em cinema alemão John E. Davidson especula que os únicos dois momentos em que há imagens de pobreza do bairro do Brooklyn, enquanto continuamos ouvindo o som do discurso do bispo, são por que “o rolo de película da câmera que filmava o sermão de Huie tenha chegado ao fim e tenha sido necessário trocá-lo”. ²

O insight e a catarse

Para o crítico de cinema norte-americano Vincent Canby (1924–2000), “Herzog claramente aprecia a entrega e a presença de palco de Huie, uma mistura de de garoto-propaganda de televisão, comediante de stand-up, cantor gospel, líder de torcida e ‘coach’ celestial”. ³ De fato, é um filme que fala por si só – e isso não é exatamente um elogio. Não há nenhuma análise, crítica ou reverente, sobre o sermão do pastor. É como se, nos dias de hoje, alguém transmitisse o culto, via internet, pelo site do bispo ou da igreja. Torna-se cansativo e desinteressante já na primeira metade. Você fica esperando algo extraordinário acontecer – como em God’s Angry Man, por exemplo –, e nada acontece.

O único resquício de estilização é o plano final do documentário, em que o bispo Huie fica estático, em silêncio (em contraste com sua performance enérgica e verborrágica), em frente à câmera, por quase um minuto, até que aparece a legenda “Wenn der Mensch etwas mit der Sonne zu schaffen hätte, wäre sie heute nicht aufgegangen“, algo como “Se o homem tivesse algo a ver com o sol, este não teria nascido hoje”, frase que Huie repete algumas vezes durante o sermão.

A verdade é que o tema, ainda mais como contraponto de God’s Angry Man, é bastante interessante. Porém, sua abordagem é decepcionante, ainda mais quando comparada com o desolado e impressionante retrato do pastor Gene Scott no filme-irmão deste Huie’s Sermon.

Aliás, como nota Roger E. Davidson, um pregador é a antítese do outro: “Roger é negro, rodeado por uma congregação negra, lidera uma igreja em uma expressão alegre da fé na música, tem um estilo de pregação que se apresenta como natural, e exala uma piedade que é irrepreensível. Scott é branco, nunca mostrado com uma congregação ou fieis individuais (ainda que ele liste os números impressionantes de paroquianos em suas duas igrejas), os ritmos de música gospel em seus shows parece artificiais e ingênuos, em vez de autênticos, e ele nunca faz um pronunciamento no filme que se aproxime de piedade mais que 'a honra de Deus está em jogo a cada noite’. Scott se parece mais com os fanáticos com quem de Herzog é frequentemente associado – sejam reais, como Jean-Bedel Bokassa [de Echos Aus Einem Düsteren Reich, de 1990], ou fictícios, como como as criações de Kinski”. 4

Parece até preguiça do diretor alemão, mas, aparentemente, foi intencional: o documentário surgiu de um encontro casual entre Herzog e Huie, quando este estava hospedado na casa de Francis Ford Coppola, num intervalo da pré-produção de Fitzcarraldo, como já expliquei; Werner Herzog perguntou se podia registrar um dos cultos de Huie e este concordou, simples assim, num registro literal.

O próprio diretor já disse: “O filme não precisa de discussão. É um trabalho puro sobre as alegrias da vida, da fé e do fazer-cinema. Há uma grande alegria na imagem de Huie enquanto ele começa completamente inofensivo e gradualmente atiça a si mesmo e ao seu rebanho para o alto, no mais maravilhoso fervor extático”. 5

O professor de cinema norte-americano Willian Van Wert nos dá uma pista para o motivo do interesse do alemão pelo sermão de Huie: "Huie's Sermon é como Woodchuck..., uma vez que a linguagem usada no sermão é rápida, repetitiva, cumulativa e enfeitiçante, mais do que uma comunicação”. 6

Realmente faz sentido, ainda mais se repassarmos todos os filmes em que a linguagem – em comunicabilidade e incomunicabilidade, em comunhão e em isolamento – foram problematizadas até agora nesta #MaratonaHerzog: Letzte Worte, Massnahmen Gegen Fanatiker, Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit, Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle, How Much Wood Would A Woodchuck Chuck...

Por isso é claro que Huie L. Rogers, que “conduz seu sermão com muita energia, quase como um cantor de blues ou de rock7, como diz o especialista brasileiro em multimeios Gabriel Kitofi Tonelo, naturalmente atrairia a atenção do diretor. Porém, como Gabriel também pondera, não há como negar que é uma obra menor na carreira do alemão, pouco comentada “justamente porque a estilística trabalhada nele foge muito do que se espera como um filme tipicamente herzoguiano”. 8

Talvez porque Huie fosse, afinal, um personagem menos interessante que Gene Scott. Ou porque o interesse de Herzog, preocupado com Fitzcarraldo, oscilasse em seu envolvimento com essas duas pequenas obras intermediárias. Ou o alemão simplesmente quis que cada filme fosse do jeito que é.

O fato é que este Huie’s Sermon está entre os piores filmes que vi até agora nesta maratona – é o mais chato desde Herz Aus Glas, outro do qual não entendi o propósito até hoje.

Na próxima postagem, o insano e monumental Fitzcarraldo, testamento definitivo de Werner Herzog Stipetić.


Curiosidades:

– Huie L. Rogers ainda é um bispo ativo, e você pode saber mais sobre ele e acompanhar seu trabalho aqui.
Foto atual de Huie [@hlrministries]

¹ http://www.wernerherzog.com/main/de/html/films/films_details/brief_survey.php?film_id=23

² 4 DAVIDSON, John E. The Veil Betwenn Werner Herzog’s American TV Documentaries. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager.
³ http://www.nytimes.com/1983/07/20/movies/film-werner-herzog-documentaries.html
5 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
6 WERT, Willian Van. Last Words: Observations On A New Language. In: The Films Of Werner Herzog: Between Mirage And History, de Timothy Corrigan. Methuen, 1986.
7 8 TONELO, Gabriel Kitofi. Werner Herzog, Documentarista: Figuras Da Voz E Do Corpo. Tese de Mestrado. Unicamp, 2012.