domingo, 12 de outubro de 2014

(1980) God’s Angry Man

Alemanha (EUA) | 44min | 16 mm |cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção e som: Walter Saxer
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Thomas Mauch
Música: excertos de Fiedelquartett Tele, Rudolf Obruca, Benedetto Marcello e Antonio Vivaldi
Elenco: Gene Scott

Embora o site oficial do diretor descreva este media-metragem, feito para a tevê alemã, como “um filme sobre um monomaníaco e um mal-estar em âmbito nacional, um filme sobre a ganância e o dinheiro” ¹, não é bem assim, ou pelo menos não é só isso.

God’s Angry Man, que tem o subtítulo Dr. Gene Scott, Fernsehprediger (tele-evangelista), nos apresenta, sem rodeios, ao pastor Gene (1929–2005), famoso na tevê americana entre os 1970s e 1980s, com seu programa Festival Of Faith, no qual basicamente concentrava seus esforços, por meio de um discurso ao mesmo tempo emotivo, irônico e raivoso, em convencer a audiência a contribuir com generosas quantias para sua igreja.
Um programa peculiar

O documentário alterna cenas de Scott (PhD em Filosofia da Educação pela Universidade de Stanford) em seu programa – ora intimidando o espectador para que contribua com a igreja, ora reclamando do Federal Communications Commission (FCC), órgão que regula as comunicações nos EUA, e que vivia no seu pé, por causa supostas de licenças fraudulentas de transmissão –, de seus pais falando sobre ele, e dele mesmo falando com Herzog, respondendo diretamente para a câmera.

Ira

Nas palavras do especialista em cultura alemã John E. Davidson: “Ele jamais fala de fé ou amor, ou mesmo de temer a Deus – se muito, ele invoca um medo real de Deus. A única existência de Deus é ser encontrado no tamanho e na riqueza da instituição da igreja que serve para defender sua imagem. Ainda que ele tema pela honra de Deus, Scott não diz que serve a Deus. Porém ele não pode ficar parado enquanto vê uma igreja ruir, e ainda que ele não tenha sido contratado para isso, ele arriscaria qualquer coisa para manter aquelas igrejas à tona”. ²

O estudioso norte-americano de cinema Brad Prager acrescenta: “Isso mostra o jeito como certa religiosidade decorre da raiva de Scott, muito mais do que qualquer tipo de estudo bíblico ou de outras maneiras convencionais de iluminação”. ³

Como Herzog, seguindo seu estilo, montou o documentário sem tons evidentes de denúncia ou crítica, mas apenas mostrando os fatos, são nesses momentos intimistas, em que as rugas e olhar cansado de Gene Scott emolduram seus lamentos e suas frustrações, que passamos a nos compadecer do sujeito que estávamos desprezando momentos antes.

Ressentimento

Das profundezas do pregador caricatural e antipático surge um personagem trágico, amargurado pela aceitação de seu fado: vivendo para as câmeras, oito horas por dia, ao vivo, sua identidade diluída em maneirismos de um personagem do qual ele não conseguia se livrar – em muito por aceitar seu destino de filho de pastor.

Seus depoimentos vão contando sobre o peso que ele carrega, dia após dia: “As pessoas pensam isso: há um pobre filho da mãe na frente da câmera com os mesmos problemas que nós, e lutando pela sobrevivência. E eles se identificam com isso. (...) Eles veem a minha vida, a luta de vida ou morte pela minha organização, minha luta pela sobrevivência contra os mesmos obstáculos que enfrentam”.

Conforme o documentário avança, suas angústias e seu cansaço se desnudam ainda mais: “Deixe-me dizer o que me faria feliz: me coloque num avião rumo a uma cidade a 8.000 Km de distância, onde ninguém me conhece; sim, eu gostaria de ir a algum lugar sem ter essa constante luta de vida ou morte. (...) Eu sou bom demais para ser realmente ruim e ruim demais para ser realmente bom”.

Nas palavras do diretor: “Senti que ele era profundamente infeliz. Um homem muito inteligente, mas infeliz. Havia certamente algo como uma compulsão nele, e quando fizemos o filme ele estava fazendo programas ininterruptamente por seis a oito horas diárias. Ele estava completamente sozinho lá, falando com a câmera, dia após dia e podia interromper o fluxo algumas vezes, para que seus cantores apresentassem algum tipo de falsa canção religiosa, e só porque ele precisava ir ao banheiro. Como você pode manter algo assim por tantos anos? (...) Ele parece apelar para a paranoia e a loucura de nossa civilização, e nisso ele é muito bem sucedido”. 4

E no clímax do final, quando Gene Scott fala sobre uma bolsa que carrega consigo para todo lugar, e que ninguém além dele sabe o que tem dentro, você percebe de que está diante de um anti-herói herzogiano por excelência, cheio de sonhos triturados pela aparente inevitabilidade das pressões externas, da existência e da sociedade.

E se vê também diante de mais uma obra genial do alemão (mais uma para a qual não dava nada e terminei estupefato), com direito à cacofonia de bonequinhos de corda, dignos de Stroszek, satirizando de forma doentia o FCC – e no fundo o próprio simulacro de vida-show do qual Gene Scott não consegue escapar. Absurdo imperdível.


Segredo

Ecos stroszekianos


Curiosidades:

– O título original do projeto, Glaube Und Währung (Fé E Dinheiro), foi mudado depois que Gene Scott se mostrou chateado com ele.

– Herzog já era fascinado por Gene Scott desde suas viagens anteriores aos EUA, quando sempre parava para assistir a seus programas.

God’s Angry Man, assim como sua cara-metade Huie’s Sermon, do mesmo ano (ambos sobre aspectos da religiosidade norte-americana), foi feito enquanto Herzog aguardava o período de pré-produção para as filmagens de Fitzcarraldo (1282).


¹ http://www.wernerherzog.com/legacy_shop/main/de/html/films/films_details/brief_survey.php?film_id=22
² DAVIDSON, John E. The Veil Betwenn Werner Herzog’s American TV Documentaries. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.
³ PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
4 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.