domingo, 12 de outubro de 2014

(1980) God’s Angry Man

Alemanha (EUA) | 44min | 16 mm |cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção e som: Walter Saxer
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Thomas Mauch
Música: excertos de Fiedelquartett Tele, Rudolf Obruca, Benedetto Marcello e Antonio Vivaldi
Elenco: Gene Scott

Embora o site oficial do diretor descreva este media-metragem, feito para a tevê alemã, como “um filme sobre um monomaníaco e um mal-estar em âmbito nacional, um filme sobre a ganância e o dinheiro” ¹, não é bem assim, ou pelo menos não é só isso.

God’s Angry Man, que tem o subtítulo Dr. Gene Scott, Fernsehprediger (tele-evangelista), nos apresenta, sem rodeios, ao pastor Gene (1929–2005), famoso na tevê americana entre os 1970s e 1980s, com seu programa Festival Of Faith, no qual basicamente concentrava seus esforços, por meio de um discurso ao mesmo tempo emotivo, irônico e raivoso, em convencer a audiência a contribuir com generosas quantias para sua igreja.
Um programa peculiar

O documentário alterna cenas de Scott (PhD em Filosofia da Educação pela Universidade de Stanford) em seu programa – ora intimidando o espectador para que contribua com a igreja, ora reclamando do Federal Communications Commission (FCC), órgão que regula as comunicações nos EUA, e que vivia no seu pé, por causa supostas de licenças fraudulentas de transmissão –, de seus pais falando sobre ele, e dele mesmo falando com Herzog, respondendo diretamente para a câmera.

Ira

Nas palavras do especialista em cultura alemã John E. Davidson: “Ele jamais fala de fé ou amor, ou mesmo de temer a Deus – se muito, ele invoca um medo real de Deus. A única existência de Deus é ser encontrado no tamanho e na riqueza da instituição da igreja que serve para defender sua imagem. Ainda que ele tema pela honra de Deus, Scott não diz que serve a Deus. Porém ele não pode ficar parado enquanto vê uma igreja ruir, e ainda que ele não tenha sido contratado para isso, ele arriscaria qualquer coisa para manter aquelas igrejas à tona”. ²

O estudioso norte-americano de cinema Brad Prager acrescenta: “Isso mostra o jeito como certa religiosidade decorre da raiva de Scott, muito mais do que qualquer tipo de estudo bíblico ou de outras maneiras convencionais de iluminação”. ³

Como Herzog, seguindo seu estilo, montou o documentário sem tons evidentes de denúncia ou crítica, mas apenas mostrando os fatos, são nesses momentos intimistas, em que as rugas e olhar cansado de Gene Scott emolduram seus lamentos e suas frustrações, que passamos a nos compadecer do sujeito que estávamos desprezando momentos antes.

Ressentimento

Das profundezas do pregador caricatural e antipático surge um personagem trágico, amargurado pela aceitação de seu fado: vivendo para as câmeras, oito horas por dia, ao vivo, sua identidade diluída em maneirismos de um personagem do qual ele não conseguia se livrar – em muito por aceitar seu destino de filho de pastor.

Seus depoimentos vão contando sobre o peso que ele carrega, dia após dia: “As pessoas pensam isso: há um pobre filho da mãe na frente da câmera com os mesmos problemas que nós, e lutando pela sobrevivência. E eles se identificam com isso. (...) Eles veem a minha vida, a luta de vida ou morte pela minha organização, minha luta pela sobrevivência contra os mesmos obstáculos que enfrentam”.

Conforme o documentário avança, suas angústias e seu cansaço se desnudam ainda mais: “Deixe-me dizer o que me faria feliz: me coloque num avião rumo a uma cidade a 8.000 Km de distância, onde ninguém me conhece; sim, eu gostaria de ir a algum lugar sem ter essa constante luta de vida ou morte. (...) Eu sou bom demais para ser realmente ruim e ruim demais para ser realmente bom”.

Nas palavras do diretor: “Senti que ele era profundamente infeliz. Um homem muito inteligente, mas infeliz. Havia certamente algo como uma compulsão nele, e quando fizemos o filme ele estava fazendo programas ininterruptamente por seis a oito horas diárias. Ele estava completamente sozinho lá, falando com a câmera, dia após dia e podia interromper o fluxo algumas vezes, para que seus cantores apresentassem algum tipo de falsa canção religiosa, e só porque ele precisava ir ao banheiro. Como você pode manter algo assim por tantos anos? (...) Ele parece apelar para a paranoia e a loucura de nossa civilização, e nisso ele é muito bem sucedido”. 4

E no clímax do final, quando Gene Scott fala sobre uma bolsa que carrega consigo para todo lugar, e que ninguém além dele sabe o que tem dentro, você percebe de que está diante de um anti-herói herzogiano por excelência, cheio de sonhos triturados pela aparente inevitabilidade das pressões externas, da existência e da sociedade.

E se vê também diante de mais uma obra genial do alemão (mais uma para a qual não dava nada e terminei estupefato), com direito à cacofonia de bonequinhos de corda, dignos de Stroszek, satirizando de forma doentia o FCC – e no fundo o próprio simulacro de vida-show do qual Gene Scott não consegue escapar. Absurdo imperdível.


Segredo

Ecos stroszekianos


Curiosidades:

– O título original do projeto, Glaube Und Währung (Fé E Dinheiro), foi mudado depois que Gene Scott se mostrou chateado com ele.

– Herzog já era fascinado por Gene Scott desde suas viagens anteriores aos EUA, quando sempre parava para assistir a seus programas.

God’s Angry Man, assim como sua cara-metade Huie’s Sermon, do mesmo ano (ambos sobre aspectos da religiosidade norte-americana), foi feito enquanto Herzog aguardava o período de pré-produção para as filmagens de Fitzcarraldo (1282).


¹ http://www.wernerherzog.com/legacy_shop/main/de/html/films/films_details/brief_survey.php?film_id=22
² DAVIDSON, John E. The Veil Betwenn Werner Herzog’s American TV Documentaries. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.
³ PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
4 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

(1979) Woyzeck

Alemanha (República Tcheca) | 81min | 35 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog, baseado em peça de Georg Büchner
Produção e direção: Werner Herzog
Som: Harald Maury
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jorg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Fiedelquartett Tele, Rudolf Obruca, Benedetto Marcello e Antonio Vivaldi
Elenco: Klaus Kinski (Woyzeck), Eva Mattes (Marie), Wolfgang Reichmann
(Hauptmann), Willy Semmelrogge (médico), Josef Bierbichler
(primeiro-tambor), Paul Burian (Andres), Volker Prechtel (criado),
Dieter Augustin (Market Crier), Irm Hermann (Margret), Wolfgang
Bächler (Jude), Rosy- Rosy Heinikel (Käthe), Herbert Fux (Subaltern),
Thomas Mettke (taverneiro), Maria Mettke (taverneira)


"O texto e as imagens transmitem uma impressão de desamparo perante os acontecimentos: há algo maior que tomou controle desses personagens que esperaram por nada mais que aproveitar seu pequeno pedaço de terra. A palavra immerzu é usada frequentemente no filme, e ainda que seja traduzido como ‘sem cessar’, isso carrega a conotação de algo que não dá descanso, que não dá alívio, o que reflete o constante ataque sobre o vitimizado Woyzeck.” ¹


Angústia personificada

Apenas cinco dias após o término dos trabalhos em Nosferatu, Herzog pegou o protagonista, e mais toda a equipe de filmagem, e começou a rodar seu antigo projeto de filmar a última e mais célebre peça do dramaturgo alemão Georg Büchner (1813–1837), a fragmentária Woyzeck.


Exceção a algumas contextualizações, o filme é fiel à peça: o soldado raso Woyzeck, sujeito humilde e sem confiança, humilhado pelos de patente mais alta, participa de um experimento ‘científico’ no qual precisa se alimentar somente de ervilhas, por meses. Tudo para arranjar dinheiro para casar com Eva, que rejeita seus avanços por ele não ter nem dinheiro para sustentar direito o filho deles, nem para formalizar o casamento. Ao mesmo tempo ela o trai acintosamente com o primeiro-tambor do Exército, mais forte e mais bonito. A traição e a constante humilhação, junto com a confusão mental que a inusitada dieta traz, acaba fazendo com que Woyzeck mate a esposa, para cometer suicídio em seguida.

Assim como em sua versão para Nosferatu, de Murnau, Herzog filmou a peça de Büchner pretendendo inserir sua obra (e todo o Novo Cinema Alemão) na tradição artística germânica que havia sido interrompida com a ascensão do nazismo. Em suas palavras: “Fazer um filme de Woyzeck significou buscar o mais significativo da história cultural da Alemanha, e por isso há algo no filme que está além de mim. Algo que toca os cumes dourados da cultura alemã, e por isso o filme brilha. Ainda que tudo que eu tenha feito foi buscar e tocar essas alturas”. ²
Mulher infiel

Não é preciso pensar muito para concluir que Woyzeck é mais um (im)perfeito anti-herói herzogiano: confuso, deslocado e humilhado. Está no mundo, sem, no entanto, fazer parte dele.


Há claros parentescos com Kaspar Hauser, no modo como o cientificismo o subestima, subjuga e traça vereditos para seu comportamento, e com Stroszek (o de Bruno S), dado o jeito como certos aspectos da sociedade lhe são negados por sua condição social inferior.


Para Woyzeck, como para os supracitados, sua existência precária é inescapável: não há saída desse carrossel (que, aliás, aparece com as mesmas cores do vestido de Eva quando é apanhada dançando com o primeiro-tambor) que gira indefinidamente, sem ir a parte alguma, Tal como os caminhões em Auch Zwerge Haben Klein Angefangen e Stroszek – e neste, também a infame galinha –, ou mesmo os moinhos de Lebenszeichen, a vida é um fado (e um fardo) inescapável. Como Bruno S em Stroszek e Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle, só a morte é redentora dessa existência de puro desterro.

E a força do filme reside no fato de que, mais do que em qualquer outro filme, esse peso do mundo inteiro recai sobre os ombros do protagonista: ao contrário de outras obras, em que havia coadujuvantes bizarros e animais grotescos dividindo a missão de mostrar os conceitos de natureza hostil do diretor, em Woyzeck toda essa angústia se derrama sobre o rosto extenuado de Klaus Kinsi, seguramente em seu maior papel. Nas palavras do crítico norte-americano de cinema Vincent Canby (1924–2000): “O Senhor Kinski, com seu rosto profundamente vincado que é simultaneamente jovial e antigo, parece alguém a quem a morte concedeu misericórdia. Assim que colocamos os olhos sobre ele, ele está tomado por demônios”. ³

A estudiosa de cinema Lúcia Nagib acrescenta: “É justamente isso que se espera de um personagem de Büchner: gestos cortantes, feições que se distorcem e puxam ao grotesco, pronúncias marcadas e propositadamente artificiais, contrastes, enfim, já que eles estão presentes em cada linha do texto”. 4

Herzog, que pretendia usar exatamente a exaustão do ator para dar mais veracidade e intensidade à angústia do personagem principal, completa: “Kinski nunca foi um ator que meramente disse suas falas. Ele se exauria completamente, e após Nosferatu ele permaneceu profundamente no mundo que criamos juntos, isso estava muito claro desde o primeiro dia em que caminhamos pelo set de Woyzeck. Ele realmente deu à sua performance uma qualidade diferente desde a cena de abertura, em que ele parece estar tão frágil e vulnerável. Olhe para ele nessa sequência, quando ele está olhando fixamente para a câmera. Há algo que não está bem em seu rosto. Ele está verdadeiramente inchado em um dos lados.5

Eu já tinha visto este filme algumas vezes na década passada, pois frequentemente ele era reprisado na TV Cultura (junto com Mein Liebster Feind, de 1999), e confesso que não me chamava muito a atenção, eu o considerava um filme menor na carreira de Herzog – achava o protagonista exagerado, e no máximo ria do inusitado da dieta de ervilhas, que obviamente o enlouquecia.

Porém, revendo nesse final de semana, uns oito anos mais velho, e após ver tantos filmes do diretor, ainda mais nesse contexto de estudá-lo e reconhecer seus padrões, vejo com um dos mais belos e tocantes de sua filmografia.

Ao contrário da grotesquidão de filmes imediatamente anteriores, a angústia e o desamparo que Woyzeck transpira vem com traços de melancolia e romantismo que têm mais a ver com Lebenszeichen e Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner

Lúcia Nagib teoriza: “O filme de Herzog transmite [com suas paisagens] uma delicadeza na exposição não-verbal dos sentimentos do personagem central que só presenciáramos antes em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle (filme, como dissemos, já concebido sob influência de Büchner)”. 6

A cena em que o protagonista, desesperado, corre pateticamente, falando sozinho, pelos campos floridos, até cair, desajeitado, é talvez a coisa cena mais sublime que o alemão já filmou. Todo mundo que já teve o coração e o espírito alquebrados, partidos, pela existência, pode pegar nas mãos a dor que atormenta Woyzeck nesse momento febril. 


Todo o peso do mundo

E enfim, quando se consuma o assassinato, e o posterior suicídio, Woyzeck é a maior vítima (por isso a vítima não é mostrada durante o assassínio), pois mata a si mesmo duas vezes: primeiro em desespero, depois em amargura. Não se vinga nem do oficial, nem do cientista, nem dos jocoso colegas, nem do primeiro-tambor, não prova à esposa infiel seu valor – ao contrário, acaba todas as chances disso – e só pelo suicídio põe fim ao seu malogrado fado, a derradeira vitimização.

Como diz a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli: “O gesto sai de cena porque a música, sozinha, basta como único vestígio para o descrever e ampliar. O grito que se ouve é um grito de dor que ressoa para além da violência de da morte, naquilo que poderia ser considerado um melodrama trágico e negro, que não conhece paz por causa da tensão desesperada com a qual o protagonista atravessa a sua própria história.7

Morrendo duas vezes

Quanto ao final, em que os legistas encontram ambos os corpos, o estudioso norte-americano de cinema Brad Prager destaca: “A epígrafe final ‘Um bom assassinato, um verdadeiro assassinato, um belo assassinato, tão belo quanto um homem pode esperarr ver, não tínhamos igual a esse havia tempos’ poderia ser conectada aos momentos finais de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle”. 8

É o retrato de uma cultura ao mesmo tempo indiferente e fascinada ante às suas próprias crueldades. Não há redenção nem na ciência, nem no primitivismo. Homens, animais, acaso, destino, tudo leva à mesma ruína sem porquê no universo desolado herzogiano.


Curiosidades:

– A abertura do filme é a mesma de Stroszek, um xilofone desafinado tocado por Bruno S.

– Pela performance como Marie, Eva Mattes ganhou o prêmio de melhor atriz coadjuvante no Festival de Cannes em 1979.

– Eva Mattes, que, aliás, já havia participado de Stroszek, como a prostitua Eva, fora namorada de Herzog, e acabou tendo uma filha (Hanna Mattes) com ele em 1980, quando o diretor já era casado com Martje Grohmann (a Mina de Nosferatu).

– A peça de Büchner é inspirada na história real do peruqueiro (sim, peruqueiro) Johann Christian Woyzeck, de Leipzig, que, em 1821, esfaqueou até a morte sua amante Christiane Woost numa crise de ciúme.

Woyzeck foi filmado em 17 dias e editado em apenas cinco.

– Herzog pretendia filmar já no dia seguinte após o término das filmagens de Nosferatu, o que só não ocorreu porque foram precisos alguns dias até que o cabelo de Kinski crescesse novamente para o papel principal.

– A equipe usada em Nosferatu foi reutilizada basicamente porque a burocracia na Tchecoslováquia era tão grande que era mais fácil fingir que ainda estavam filmando a saga vampiresca do que pedir autorização às autoridades locais para filmar outra obra no país.

– Sobre essa economia toda de tempo e equipe, Herzog: “Usamos séries de cenas de quatro minutos, então o filme é essencialmente feito de mais ou menos vinte e cinco corte, mais um par de takes menores. Foi muito difícil de manter isso: a ninguém era permitido errar. Esse foi um filme econômico de um jeito que eu provavelmente nunca mais conseguirei fazer”. 9


¹ 7 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
² 5 9 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.
³ CANBY, Vincent. In:
http://www.nytimes.com/movie/review?res=950CE3DC1330E631A25757C2A96E9C946890D6CF
4 6 NAGIB, Lúcia. Werner Herzog: O Cinema Como Realidade. Estação Liberdade, 1991.
8 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

(1979) Nosferatu


Alemanha (filmado em República Tcheca, na Holanda e no México) | 103min | 35 mm |cor
Roteiro: Werner Herzog, a partir do livro de Bram Stoker e do filme de FW Murnau
Produção e direção: Werner Herzog
Som: Walter Saxer
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jorg Schmidt-Reitwein
Música: Florian Fricke (Popol Vuh) e excertos Richard Wagner e Charles Gounod
Elenco: Klaus Kinski (Conde Drácula), Isabelle Adjani (Lucy Harker), Bruno Ganz (Jonathan Harker), Jaques Dufilho (capitão), Roland Topor (Renfield), Walter Ledengast (Van Helsing), Dan van Husen (guarda), Roger Berry Losch (primeiro marinheiro), Jan Groth (capitão), Carster Bodinus (Schrader), Martje Grohmann (Mina), Ryk de Gooyer (oficial), Clemens Scheitz (oficial de justiça), Lo van Hensbergen (inspetor), John Leddy (cocheiro), Margiet van Hartingsveld (empregada), Beverly Walker (madre-superiora)


[Não vou fazer comparações com a obra-prima de Murnau aqui, pois sairia muito do escopo deste blog, além de demandar muito tempo para quem ainda tem dezenas de filmes para percorrer. A versão de Herzog tem força e personalidades suficientes para ser analisada por si só, além de não ser tão fiel nem ao filme-homenageado (a despeito de haver cenas iguais, como homenagem), nem ao livro original.]

Uma vez que todo mundo conhece a história original (pelo menos é isso que Herzog supõe) – o jovem Jonathan Harker vai à Transilvânia fechar o contrato da venda de uma casa para o tal Conde Drácula, e chegando lá em seu castelo percebe que ele é um tipo um tanto excêntrico, e que talvez haja bastante encrenca naquele soturno castelo, inclusive para a noiva de Jonathan, e aí sobram mordidas no pescoço de quase todo mundo –, o diretor não perde tempo com apresentações ou construção de personagens.

Nas palavras do alemão: “Meu filme foi totalmente baseado no Nosferatu original, ainda que eu quisesse injetar um espírito diferente nele. No filme de Murnau a criatura é assustadora porque ele não possui alma e parece com um inseto. Mas no vampiro de Kiski você tem a verdadeira angústia existencial humana. Eu tentei ‘humanizá-lo’. Eu quis dotá-lo de sofrimento humano e solidão, com um verdadeiro anseio por amor, e, mais importante, uma característica essencial do ser humano: a mortalidade.” ¹

Assim o filme, de subtítulo Phantom Der Nacht (Fantasma Da Noite), fica bastante livre pra exercícios estilísticos, o que faz deste um dos visualmente mais belos de toda a filmografia herzogiana, num grande trabalho do diretor de fotografia Jörg Schmidt-Reitwein.

Devo mencionar, aliás, que este é, visualmente, o filme mais belo de Werner Herzog. Além do admirável trabalho de fotografia (muito bem ornado pela trilha do Popol Vuh), Nosferatu é a obra em que o olhar genial do diretor, até então sempre direcionado a manifestações mais intuitivas, livres, até caóticas, dá lugar a um grande apuro técnico, em cenas cuidadosamente construídas. 


Belíssima fotografia

Cada sequência merece ter o olhar repousado sobre ela, é um filme para ver e rever de tempos em tempos, com diferentes climas e humores, já que é uma obra de arte bastante sensorial, quase mística. As paisagens, como de praxe na mitologia herzogiana, são personagens importantes, sempre dando o clima preciso de morbidez e melancolia à narrativa.
Todos os personagens parecem perdidos, especialmente o trio principal: Jonathan e Lucy, um casal visivelmente asséptico, infeliz em seu relacionamento idealizado, frio; e Drácula, solitário, melancólico, frustrado. Até Van Helsing, nesta versão, é um personagem fraco, quase patético.

Nina e Jonathan: casal amargurado

Deve-se notar que o elemento água é usado frequentemente no filme, para simbolizar o destino, para o bem e para o mal: Jonathan fica feliz de sair de sua cidade, onde as águas retornam sempre ao mesmo lugar, e ir a Transilvânia; Lucy diz que todos estão condenados porque os rios continuam correndo sem eles, e a morte é a única certeza.

O triângulo (des)amoroso do filme, entre sonho e realidade, amor e morte,  se origina da falta de paixão, da impossibilidade de mudar esse curso d’água que é o destino. Todos estão nas mãos de Drácula (até ele mesmo, em sua solitude), que é a escuridão, o mal, a decrepitude, e por que não, a monotonia do não-ser.

Vampiro amargurado

Como em tantos filmes do diretor, trata-se da inútil luta do ser humano consigo mesmo e com a existência. Nosferatu é obviamente um protagonista herzogiano de tão inadequado, deslocado. E o casal, cada um a seu modo, traz essa desgraça para si, para fazer emergir essa infelicidade, esse horror instintivo que ambos trazem consigo.

Ambos abraçam a destruição ao mesmo tempo em que tentam evitá-la, e o destino do vampiro no final das contas é tão-somente a afirmação de que não se pode enganar a morte: Nosferatu perece, mas ainda vive, em outro corpo, em outra forma.

Festim diabólico

Não há exatamente redenção, são todos incapazes de se realizar ou realizar algo. Do início, com as múmias que servem de memento mori e o voo lento e silencioso do morcego, até o final, em que todos se entregam – Jonathan à loucura e perdição, Lucy ao vampiro e Drácula à destruição.

No final, aliás, Nosferatu não exibe qualquer mensagem de “fim” ou coisa parecida (nem mesmo os créditos), porque dessa forma, para o diretor (como ele diz nos comentários do DVD), "o filme iria continuar dentro de nós, do público".

E continua. Os ratos estão por toda parte, espalhando a pestilência, e todos cantam e se embriagam, em desespero, porque o Sísifo herzogiano só pode fingir que é feliz.

Como tão bem resumiu o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013): “’Nosferatu’ não pode ser confinado à categoria de ‘filme de horror’. É sobre sentir medo, e sobre o quão facilmente os incautos podem mergulhar no Mal”. ²


Curiosidades:

Nosferatu foi um dos cinco (!) filmes de vampiro lançados em 1979 – os outros foram Dracula (de John Badham, com Frank Langela), Love At First Bite (comédia de Stan Dragoti), Nocturna (de Harry Hurwitz, com John Carradine), Graf Dracula [Beißt Jetzt] In Oberbayern (de Carl Schenkel ), Thirst (de Ron Hardy) e Salem's Lot (de Tobe Hopper, baseado em história de Stephen King);

– o filme recebeu o Urso de Prata de melhor figurino em Berlim e o prêmio de melhor filme estrangeiro da National Board of Review (ambos em 1979), enquanto, no mesmo ano, Klaus Kinski recebeu o prêmio de melhor ator principal do German Film Awards, e, em 1980, o Pelicano de Ouro do Festival de Cinema de Cartagena por sua atuação;

– as incrivelmente lentas (e difíceis) sequências do morcego voando foram retiradas de um documentário científico;

– as múmias do início do filme são reais, compradas pelo diretor de uma exposição no cemitério da cidade mexicana de Guajuanato, onde houve uma epidemia de cólera em 1833, que vitimou essas pessoas;

– Herzog foi acusado de crueldade com animais por ativistas, pois os 11 mil (!) ratos brancos foram importados da Hungria em condições tão deploráveis que começaram a devorar uns aos outros antes de chegar a Holanda, e os sobreviventes foram pintados de cinza para as filmagens;

– como a obra de Bram Stoker já havia caído em domínio público, Herzog resolveu restaurar os nomes originais do romance, que não puderam ser usados por Murnau (Drácula, por exemplo, era Orlok);

– os personagens Mina e Lucy têm seus papeis invertidos em relação ao livro de Bram Stoker;

– Martje Grohmann, aliás, que interpretou Mina, era esposa de Herzog à época (foram casados de 1967 a 1987), e também trabalhou em Aguirre, Der Zorn Gottes, como assistente de produção, e em Lebenszeichen, como assistente de direção, além de ter traduzido para o inglês o roteiro de Invincible (2001);

– o filho de Herzog e Martje, Rudolph, nascido em 1973, foi roteirista e produtor executivo de The White Diamond (2004), roteirista de Happy People: A Year in the Taiga (2010), diretor-assistente em Glocken Aus Der Tiefe (1993), Gesualdo: Death For Five Voices (1995) e Invincible (2001), além de produtor-assistente em Little Dieter Needs To Fly (1997).

– ao contrário das aziagas jornadas com Klaus Kinski em Aguirre, Der Zorn Gottes e Fitzcarraldo (1982), o inquieto ator, segundo Herzog, “amou o trabalho e estava feliz o tempo todo, ainda que ele fizesse uma birra acada dois dias”; ³

– a maquiagem de Klaus Kinski levava quatro horas para ficar pronta, todos os dias;

– Walter Ledengast, que interpreta Van Helsing, atuou como o professor Daumer em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle

– outras pontas notáveis são do próprio Herzog, como um dos carregadores do caixão com os ratos, e de Clemens Scheitz, do amigo do protagonista de Stroszek (e que também foi o mordomo Adalbert em Herz Aus Glas), como oficial de justiça;

– os ciganos do vilarejo são “de verdade”, do leste da Eslováquia, e falam entre si no dialeto romani;

– o designer de produção Henning von Gierke, também um chef talentoso que gostava de cozinhar para a equipe, preparou ele mesmo a comida para a cena do café da manhã;

– a equipe inteira de filmagem era composta por 16 pessoas, o dobro de Aguirre, Der Zorn Gottes, e filmou por 7 semanas, após 4–5meses de pré-produção;

– os executivos da Fox, que se interessaram por coproduzir Nosferatu, se espantaram quando viram que o orçamento para o roteiro do filme era de apenas US$ 2 – Herzog afirmou que só tinha precisado de lápis e papel para fazê-lo.


¹ ³ HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

(1977) La Soufrière

Alemanha (Guadalupe) | 31min | 16 mm |cor
Roteiro, produção, som e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jorg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Rachmaninnof, Mendelsshon, Brahms e Wagner
Elenco: Werner Herzog (narrador)



De alguma maneira, escondida no filme, há também a grande questão do realismo: ‘Faz sentido ir para  tal lugar e fazer um filme em que o perigo é tão iminente, ou seria melhor ficar afastado sem fazer o filme?’ Neste sentido, para mim é um filme muito importante, e na narração falo muito claramente do absurdo da situação, da catástrofe inevitável que nunca aconteceu.” ¹

Um filme, de certa forma fracassado, pode ser bom mesmo assim? Existe lógica em fazer um documentário que provavelmente só estará completo se você morrer enquanto o fizer (e de todo modo, se perdendo também o trabalho feito)?

Após as dificuldades de Aguirre, Der Zorn Gottes, e antes da insanidade completa de Fitzcarraldo (1982), La Soufrièreé o documentário que fez o nome de Werner Herzog como o proeminente ‘risk-taking wildman’ do cinema” ², como disse o jornalista norte-americano Luke Dormehl.

Com o subtítulo Warten Auf Eine Unausweichliche Katastrophe (“Esperando Por Um Desastre Inevitável”), o filme, feito para a televisão alemã, começa com imagens da natureza à Herz Aus Glas – o vulcão expelindo seus vapores mortais de enxofre –, sob a voz reconfortante do narrador-diretor, que explica suscintamente todo o mote do filme: em 1976, o vulcão La Soufrière (‘O Sulfuroso’), na Ilha Basse-Tere, em Guadalupe, estava prestes a entrar em erupção, e a população havia sido evacuada; ao saber que um homem havia se recusado a partir, Werner Herzog decidiu ir até lá documentar essa história, acompanhado por seu diretor de fotografia Jorg Schmidt-Reitwein e pelo cameraman Ed Lachman.
Os vapores sulfurosos de La Soufrière

Sob o fundo melancólico em tons menores do 'adagio sostenuto' do Concerto Para Piano Nº 2 de Rachmaninoff (aliás, uma de minhas peças clássicas favoritas), que parece, adequadamente, um requiem instrumental, o diretor alemão captura momentos estranhamente poéticos de abandono e vazio nas cenas da cidade vazia. São imagens de uma civilização que deu errado (tema bastante caro a Herzog): semáforos inúteis, cães famintos morrendo por falta de lixo, e tornando-se, eles mesmos, carniça, além de serpentes afogadas na praia enquanto fugiam da desgraça iminente.

Como afirma Luke Dormehl, “É a perfeita metáfora para a visão do diretor da hostilidade caótica da natureza”. ² Surge na tela a recordação de um lugar que já não existe mais, mas que, no entanto, ainda está ali, evocando a Existência tanto antes quanto depois da humanidade, como se a própria noção de vida animal já fosse uma corrupção das paisagens naturais. É mais uma prova herzogiana de que a Criação deu errado e de que tudo seria melhor na quietude do não-ser.

Nas palavras do estudioso de cinema alemão Brad Prager: “Aqui, assim como em Fata Morgana, as imagens lembram as de um filme de ficção científica. É uma visão de distopia, uma civilização que sobreviveu a seus habitantes. Parece que alguma estranha praga removeu as pessoas, mas não as construções. (…) A indiferença dessas ruas à presença de Herzog rivaliza com a indiferença do vulcão para com os humanos em sua base”. ³
A melancolia da cidade abandonada (com o vulcão ao fundo)

Fugindo das nuvens sulfurosas mortíferas que descem da montanha, Herzog e seus dois escudeiros chegam próximos à borda do vulcão, onde filmam enquanto o diretor narra, sob uma atmosfera de intenso pesar, uma terrível erupção em 1902, em uma ilha vizinha, que vitimou centenas de milhares de pessoas, sem falar nos outros animais, e da qual só escapou um preso de alta periculosidade, porque estava isolado em uma solitária.

Enquanto refletimos sobre o poder destruidor da natureza e a inevitabilidade da entropia e do caos, mesmerizados pelas tomadas aéreas das proximidades do vulcão, Herzog chega até o homem que motivou o curta-metragem. Ele e mais dois repousam tranquilamente, à espera do fim.

O que se segue é uma das sequências mais poderosas já filmadas: “Assim que ouvi falar sobre a iminente erupção vulcânica, que a ilha em Guadalupe havia sido evacuado e que um habitante se recusava a partir, eu soube que eu queria ir até lá falar com ele e descobrir que tipo de relação com a morte ele tinha4, afirma o diretor.

Muito pobres, até para os padrões da ilha, eles permanecem lá simplesmente porque não têm aonde ir, onde ficar, como se estabelecer. Vagar por outras plagas e ter que voltar depois? Eles preferem permanecer. É só mais uma atitude de quem sempre esteve à margem da sociedade. As pessoas têm onde ficar, eles não. As pessoas têm como se manter em outro lugar, eles não. Elas vão, eles ficam.

Sem qualquer rancor ou ressentimento, eles entregarm o destino nas mãos da Morte – se ela quiser, virá buscá-los; é uma grande maturidade, tranquila, diante do (então) inevitável fim. Deus é que decide, que sabe, e se ele quiser que os três morram ou viva, não há nada que se possa fazer. Assim eles seguem no remanso aparentemente derradeiro. São autênticos outsiders herzogianos, acorrentados inexoravelmente aos seus destinos.

Herzog ressalta a força dessa sequência: “Primeiramente, este filme tem uma metafísica da morte: ele se direciona à indiferença que alguém pode ter quanto à morte ao encarar forças grandes demais para serem compreendidas. (…) Aqui, assim como em muitos trabalhos de Herzog, a morte individual é tão fascinante quando o próprio apocalipse, ainda que neste caso o apocalipse não chegue”. 5

A Morte sempre está à espreita, todo dia é dia de viver e morrer, logo não há poque temer o fado. Eles não possuem quase nada além da própria vida, de modo que preferem vive-la ali mesmo, de qualquer form, até o fim. Estão acostumados aos desmandos da existência.


A assustadora e lúcida tranquilidade de quem está para morrer

Porém, por algum erro na previsão dos cientistas, o vulcão simplesmente não explodiu. Foi a ‘catástrofe inevitável’ que não houve. De algum modo, o próprio documentário permanece suspenso nessa inevitabilidade que foi evitada por ora, e a voz visivelmente decepcionada, algo envergonhada, do diretor-narrador, ilustra a atitude de quem não saiu da ilha: a morte está sempre logo ali; pode não vir hoje, nem amanhã, pode vir daqui a pouco, e no final tanto faz. As marés do tempo seguem, inexoráveis e gratuitas, nos levando a reboque. O filme é mais um retrato da existência sem sentido, da civilização sem rumo, da estupidez de tudo que somos.

Essa ambiguidade de partir-ficar, viver-morrer, vencer-fracassar, persegue o próprio diretor na conclusão do documentário: “Há certamente um elemento de autoironia no final do filme. Tudo que parece tão perigoso e definitivamente condenado termina na mais completa banalidade. Isso é bom, tive que aceitar que foi assim, e é claro que, em retrospecto, tenho que agradecer a Deus de joelhos que não foi de outra maneira. É um bom resultado que o filme tenha perdido seu clímax violento. Seria realmente ridículo demais ser feito em pedaços, com dois colegas, por um vulcão, enquanto fazia um filme.6

É uma experiência cinematográfica e existencial imperdível. Mesmo que você não seja aficionado por Herzog, recomendo que veja este pequeno documentário; é mais uma joia herzogiana que te fará pensar um bocado sobre a própria vida e tudo que o rodeia por aí. Assista a este filme, sem falta.


Curiosidades:

– em 1978, o filme recebeu o prêmio de melhor cultra-metragem no German Film Awards, e Herzog foi eleito melhor diretor, assim como no Cracow Film Festival;

– após aceitar que Herzog fizesse o documentário (“Apenas vá embora logo e faça”, quando indagado por ele sobre o contrato para o trabalho, o executivo de televisão Manfred Konzelmann (com quem o alemão já havia trabalhado em Die Große Ekstase Des Bildschnitzers Steiner), simplesmente respondeu: Volte vivo e nós fazemos o contrato”;

– o diretor de fotografia Jorg Schmidt-Reitwein, então já um colaborador de longa data, topou a empreitada imediatamente, mas Ed Lachman ainda perguntou o que aconteceria se a ilha explodisse, ao que Herzog respondeu “Ed, vamos para os ares”, com uma calma absurda que convenceu o cameraman e aceitar o trabalho.


¹ PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
² ³ DORMEHL, Luke. A Journey Through Documentary Film. Oldcastle Books, 2012.
4 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
5 6 HERZOG, Werner. In: Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.

terça-feira, 27 de maio de 2014

(1977) Stroszek

Alemanha (Berlim, Nova York, Wisconsin, Carolina do Norte) | 108min | 35 mm |cor
Roteiro, produção e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Thomas Mauch
Som: Haymo Henry Heyder
Música: canções de Chet Atkins, Tom Paxton, Sony Terry e Beethoven
Elenco: Bruno S (Stroszek), Eva Mattes (Eva), Clemens Scheitz (Scheitz), Wilhelm von Homburg, Burkhard Driest e Pitt Bedewitz (cafetões), Clayton Slzapinski (mecânico), Ely Rodriguez (indiano), Alfred Edel (diretor da cadeia), Scott McKain (bancário), Ralph Wade (leiloeiro), Vaclav Cojta (médico), Michael Gahr e Yücsel Topeugürler (presos)


Às vezes, fazer filmes é somente estilizar, mas em Stroszek estávamos lidando com sofrimento humano de verdade.” ¹

Herzog não exagerou na colocação acima: Stroszek é um de seus filmes mais brutais, talvez comparável somente a Auch Zwerge Haben Klein Angefangen em matéria de desolação.

Além disso, está perfeitamente inserido no contexto cinematográfico norte-americano dessa época de ressaca do flower power (que não deu em nada) e pessimismo por causa do Vietnã; essa safra de filmes que vai de Midnight Cowboy (1969) a Taxi Driver (1976), passando por Scarecrow, Serpico, Dog Day Afternoon e Alice Doesn’t Live Here Anymore, entre tantos outros, em que os sonhos individuais são sempre esmagados pela existência em coletividade.

De uma prisão para outra

Talento incompreendido

Inspirado em muitos aspectos da vida de Bruno S (de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle), o filme conta a história de Bruno Stroszek, músico de rua alcoólatra e com problemas mentais, recém-saído da prisão (não fica claro o crime cometido), que, cansado da vida difícil em Berlim, reúne seu amigo esquisito Clemens Scheitz e sua protegida, a prostituta Eva (frequente vítima de maus-tratos por parte de seus cafetões) e parte para a América (mais especificamente para Wisconsin), em busca de uma vida melhor.

Para o especialista em cinema alemão Brad Prager, "há uma boa quantidade de crueza realista urbana nas primeiras partes do filme, o que é pouco usual para Herzog”. ² E, dado o contexto da época e o tom do filme, não precisa pensar muito para saber que essa jornada está condenada ao fracasso desde o início: assim como em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle, o personagem de Bruno S faz o percurso de uma prisão para outra.

Como notou o crítico brasileiro de cinema João Carlos Sampaio (1970–2014): “Interessante confrontar o tratamento cordial, honesto e zeloso que Bruno Stroszek experimentava no manicômio judiciário com a vida de homem livre na América, onde os que o cercam parecem bem menos amistosos”. ³

Na prisão, Stroszek tinha amigos (os companheiros de cela) e era bem tratado pelos funcionários, que também se importavam com ele. Lá fora, tanto em Berlim quanto nos EUA, o mundo é muito mais hostil: ele sai de um lugar onde toca e canta para ganhar dinheiro algum e ser maltratado pelos cafetões de sua amiga Eva (que logo se revelaria interesseira e ingrata), e mesmo as pessoas que o empregam na América zombam de sua condição mental.

O trio (aparentemente) inseparável

O crítico de cinema norte-americano Jonathan Rommey afirma que “certamente é um dos dramas mais frios já realizados sobre os sonhos europeus do que seja a América”. 4  E não significa que o filme critique os EUA ou o “Sonho Americano”. O fracasso seria inevitável em qualquer lugar, e a fria e cinzenta e sem-graça Wisconsin apenas serve de (perfeita) moldura para essa inviabilidade dos sonhos do protagonista.

Ele não entende direito o inglês, o que é mais um fato de isolamento, e não se anima com o trabalho. Enquanto isso, seu amigo se aliena com pesquisas sobre magnetismo animal (?) e Eva volta a se prostituir entre os intervalos de seu emprego de garçonete, e vai se afastando de Stroszek.

O representante do banco os visita todo dia, avisando que vão tomar de volta a casa-trêiler deles por falta de pagamento, e nem quando isso acontece Stroszek parece entender direito o que está acontecendo, pois passa os dias semibêbado no sofá.

Sem ter onde morar, com os bens leiloados, abandonado por Eva (que foge com caminhoneiros). Stroszek e Scheitz resolvem praticar um assalto para obter algum dinheiro. Sabemos que vai dar errado, só precisamos ver para saber como. E o desfecho, após a trapalhada de o banco estar fechado e eles acabarem assaltando uma pequena barbearia, é a prisão ridícula de Scheitz. Stroszek está novamente sozinho.

Em busca do sonho

Vivendo o sonho

Amargando o despertar

E o desfecho – quando Stroszek parte para um ultimo ataque contra toda a existência –, que inclui uma caminhonete girando em círculos (como em Auch Zwerge Haben Klein Angefangen), um sistema de teleférico, uma espingarda e um parque de diversões vagabundo, é “um dos finais mais selvagens e sem perdão jamais colocados em filme”, 5 segundo Jonathan Rommey, que afirma que o final, com a infame cena da galinha (galináceos são obsessão do diretor desde Spiel Im Sand) girando em círculos, inexoravelmente, é “uma das imagens da condição humana – obsessiva e fora de controle – mais insuportavelmente cruéis que um diretor já apresentou ao público”. 6

O especialista em cinema alemão Rembert Hüser acrescenta: “A repetição é o que faz da sequência [final] em Stroszek tão dura de enfrentar. A galinha que Herzog encontrou não promete um novo começo, não promete encerramento. Ela simplesmente não para. Recusa-se a partir. É demais para ter alguma esperança”. 7

O crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) conclui: “A galinha é uma ‘grande metáfora’, ele [Herzog] diz, sem saber ao certo para o quê. Minha teoria: uma força que não podemos compreender coloca algum dinheiro no ‘slot’, e nós dançamos até que o crédito acabe”. 8

A infame galinha giratória

Tal como o bebê prematuro tentando se agarrar a alguma coisa no primeiro terço do filme, Stroszek pensa – quase sempre em terceira pessoa, numa clara dissociação do sujeito – "Agora Bruno está entrando em liberdade", olhando o mundo por um vidro distorcido, tal como a metáfora do coração de vidro em Herz Aus Glas, pensando "Quando crescerei o bastante para poder ser amado?". 

Mas o fato é não há redenção possível, não existe lugar para ele em lugar algum. Ele está irremediavelmente condenado, preso na existência circular animalesca, inútil, sem qualquer sentido, mais uma coisa que deu errada no imenso universo de coisas que jamais dão certo de Werner Herzog.

Afinal, como o próprio diretor afirma, “Stroszek é sobre sonhos despedaçados9. E também é mais um filme maravilhosamente amargo e desolador, intenso e desafiador, profundíssimo em sua aridez desgarrada.

E, apesar de tudo isso, não é um filme ‘difícil’; a estrutura é convencional, às vezes poderia passar por um filme norte-americano da época, e não carece de ritmo, apesar da estrutura um tanto episódica e da diminuição da intensidade no segundo terço da história. Os cento e oito minutos de filme passarão voando, e te deixarão com um indisfarçável incômodo, um grande vazio.

Mais uma obra-prima imortal. Pare o que estiver fazendo e veja Stroszek agora mesmo (tem até em DVD no Brasil).


Curiosidades:

– O filme recebeu o Prêmio Especial do Júri no Festival das Nações de Taormina (Itália) em 1977 e o Prêmio de melhor filme no German Film Critics Award em 1978;

– Stroszek, que também batiza o protagonista de Lebenszeichen, é o nome de um colega dos tempos de faculdade de Herzog, que uma vez lhe passou cola em uma prova, e por isso foi ‘homenageado’ nessas duas ocasiões;

Stroszek foi criado de improviso (normal no universo herzogiano), para compensar o fato de que Bruno S fora preterido para o papel principal de Woyzeck (que seria filmado em 1979), em favor de Klaus Kinski;

– Inclusive o título Stroszek foi escolhido por ser semelhante a Woyzeck – tudo para agradar Bruno S;

Bruno S, digníssimo até o fim

– O roteiro foi escrito em 4 dias, com diversos traços biográficos de Bruno S, durante uma viagem do diretor para um vilarejo cinzento em Wisconsin, onde teria vivido (e matado) o célebre serial killer Ed Gein;

- O filme é dedicado ao documentarista norte-americano Errol Morris (1948–) por ambos estarem à época com planos de fazer um documentário sobre Ed Gein, o que nunca se concretizou;

– Com exceção do trio principal (Stroszek, Eva e Scheitz), todo o elenco é de não-atores;

– Quando, ao escolher aleatoriamente Clemens Scheitz em um catálogo de figurantes, Herzog foi avisado de que aquele senhor não estava mais muito bem da cabeça, teve certeza de que ele era a pessoa certa para o papel;

– Segundo Herzog, ao contrário de seu personagem, Bruno S adorou a América (especialmente Nova York) – e Clemens Scheitz não gostou muito de Bruno, pois achava que ele cheirava mal;

- O apartamento era realmente de Bruno na vida real, bem como o piano (comprado com o dinheiro de Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle), que ele chamava de ‘amigo negro’;

– Algumas das canções que Stroszek toca e canta no filme são de autoria do próprio Bruno S;

– Herzog diz evitar até hoje rever o filme, pois muitas de suas cenas dolorosas (como a do protagonista sendo espancado pelos cafetões de Eva) refletem o tipo de sofrimento pelo qual Bruno S realmente passou em sua vida;

– Diversas cenas foram improvisadas de acordo com as memórias de Bruno S, como a sequência em que Stroszek conta a Eva sobre sua infância de solidão e dor no reformatório, especialmente quando ele urinou em sua cama e foi forçado a segurar os lençóis molhados por horas, até que secassem – ou apanharia;

Stroszek carrega a infâmia de ser o filme que Ian Curtis (Joy Division), viu sozinho em casa na noite em que cometeu suicídio, em 1980;

– O disco póstumo Still, do Joy Division, de 1981, carrega muitas referências ao filme, especialmente à cena final, da galinha;

– Entre as bandas que homenageiam o filme, temos o depressivo gothic rock italiano Stroszek (projeto de membros do Frostmoon Eclipse) e o melancólico folk uruguaio Bruno Stroszek;

– Um trecho de diálogo do filme foi usado pelo duo eletrônico experimental norte-americano Ratatat na canção Drugs, de 2010 (álbum LP4), e outra dupla do mesmo estilo, o alemão Die Vögel (“Os Pássaros”, referência a Hitchcock), usou cenas de Stroszek no clipe da faixa-título do EP The Chicken, de 2012;

– A famosa "cena final da galinha" de Stroszek é homenageada quase literalmente n'Os Aneis De Saturno (1995), do escritor alemão WG Sebald (1944–2001);

- O leiloeiro dos bens de Stroszek é um dos competidores de How Much Wood Would A Woodchuck Chuck;

– A equipe inteira desgostou tanto da cena final com a galinha que Herzog teve que fazê-la inteira sozinho, e até hoje ele a considera sua obra-prima;

– Beate Mainka-Jellinghaus, montadora de longa data dos filmes herzogianos (e conhecida por não gostar deles), achou o filme tão incômodo e desagradável que pensou em desistir do trabalho assim que começou a vê-lo pela primeira vez, mas foi demovida da ideia pelo diretor, que a ameaçou com uma pá.


¹ 9 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.
² PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
³ SAMPAIO, João Carlos. Stroszek Ou A Busca Vã Dos Desajustados. In: Os Filmes Que Sonhamos, de Frederico Machado. Lume Filmes, 2010.
4 5 6 ROMMEY, Jonathan. In: 1001 Filmes Para Ver Antes De Morrer (1001 Movies You Must See Before You Die), de Steven Jay Schneider. Editora Sextante, 2008.
7 HÜSER, Rembert. In: A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. John Wiley & Sons, 2012.