sexta-feira, 15 de novembro de 2013

(1972) Aguirre, Der Zorn Gottes


Alemanha (filmado na Amazônia Peruana) | 93min | 35 mm |cor
Roteiro, produção e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Thomas Mauch, Francisco Joan, Orlando Macchiavello
Som: Herbert Prasch
Música: Florian Frickle (Popol Vuh)
Elenco: Klaus Kinski (Dom Lope de Aguirre), Helena Rojo (Inez de Atienza), Del Negro (Carvajal), Ruy Guerra (Ursua), Peter Berling (Guzman), Cecilia Rivera (Flores), Daniel Ades (Perucho), Armando Polanah (Armando), Edward Roland (Okello), Daniel Farfan, Julio Martinez, Alejandro Repullés (índios da Cooperativa Socialista de Lauramarca, no Peru)



"De certa forma, fazendo Aguirre... me propus a criar algo de um filme comercial, certamente em comparação com Lebenszeichen e Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit. O filme foi sempre destinado ao público em geral, e não estritamente a fãs de filmes de arte. Depois de olhar para meus filmes anteriores, ficou bastante claro que eu vinha servindo apenas a um nicho de mercado, e com Aguirre fiz um esforço consciente para chegar a um público mais vasto. (...) Na época, achava que o filme era uma espécie de teste pessoal para mim. Se falhasse, sabia que nunca seria capaz de fazer qualquer coisa que pudesse ser vista ampla e internacionalmente, e que eu teria que voltar a filmes como Lebenszeichen. O filme foi um teste da minha marginalidade." ¹

Eis que temos a primeira obra-prima de Werner Herzog, o filme que o tornou mundialmente conhecido (como diretor cult, claro).

Primeira das cinco parcerias entre Herzog e o ator Klaus Kinski, Aguirre, Der Zorn Gottes (Aguirre, A Cólera Dos Deuses) mistura ficção e historicidade para contar a malograda expedição de Gonzalo Pizarro (irmão de Francisco) em busca do mítico Eldorado, em 1560, na Amazônia Peruana. A continuidade da missão, rio adentro, é confiada a Dom Pedro de Ursua e Dom Lope de Aguirre; este acaba tomando o poder do grupo e lançando a todos numa espiral de caos e morte, até o final insanamente apoteótico (apoteoticamente insano).

Se eu, Aguirre, quiser que os pássaros caiam mortos das árvores, os pássaros cairão mortos das árvores. Eu sou a cólera dos deuses.” ²

A narrativa do filme, livremente inspirada na obra Relación Del Nuevo Descubrimiento Del Famoso Río Grande Que Descubrió Por Muy Gran Ventura El Capitán Francisco De Orellana, do missionário espanhol Frei Gaspar de Carvajal (1504–1584), traz dois pontos-chave da mitologia herzogiana: a natureza hostil e o fracasso humano.

Fui breve na descrição da história porque ela nem importa muito no final das contas: basta saber que é mais uma parábola sobre obsessão e frustração levada a cabo por um protagonista insano e deslocado, tentando inutilmente se debater contra a natureza e a Criação.

É a tal da ‘verdade extática’ de que Herzog tanto fala: em vez de um grande roteiro bem amarradinho, cenas épicas de lutas ou uma narrativa de grande acuidade histórica, o diretor se interessa por algo maior, mais profundo e intuitivo, um mergulho nos desvarios da humanidade que alimentam delírios grandiloquentes até que a existência as esmague implacavelmente.

O próprio diretor explica melhor: "A História está geralmente do lado dos vencedores, e Aguirre é um dos grandes perdedores da História. (...) A expedição de Aguirre é claramente fadada ao fracasso desde o início. Sabemos que isso - até mesmo antes de o filme começar - quando lemos que Eldorado é uma mera invenção dos índios. Então sabemos que o que essas pessoas estão buscando é praticamente a mecânica da derrota e da morte. Às vezes me parece que Aguirre está deliberadamente levando seus soldados para a destruição. É como uma tragédia grega, no final é óbvio que ele trouxe esses horrores sobre si mesmo. Aguirre se atreve a desafiar a natureza, de tal forma que a natureza, inevitavelmente, vai se vingar dele".³

Trabalhar com Marlon Brando devia ser um jardim da infância em comparação com Kinski.” 4

Assim acompanhamos essa expedição de puro delírio rumo ao nada. Ícaro, Prometeu, Terceira Margem do Rio, Coração das trevas... somam-se as loucuras da própria história, na natureza selvagem, do diretor obsessivo – aqui surge a lenda do realizador que põe em risco a própria vida e a de sua equipe, ameaça atores de morte, usa câmeras e animais roubados –, principalmente, de Klaus Kinski, que se agiganta neste filme, com seus olhos profundamente azuis, seu jeito esquizofrênico e seu feio rosto anguloso, tal como Fini Straubinger se impos em Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit.

Kinski, com quem Herzog manteve a vida inteira uma relação de amor & ódio, se irritava com mosquitos, com a chuva, com a equipe, com os outros atores, gritava com todo mundo e exigia privilégios como água mineral, enquanto todos bebiam água da chuva, e ia dormir no hotel mais próximo da região (sim, era bem longe). Após uma das infindáveis discussões com o diretor (a quem chamava, pejorativamente, de ‘Diretor dos Anões’, por causa de Auch Zwerge Haben Klein Angefangen), Kinski arrumou suas coisas e disse que ia embora.

Herzog nos conta o que se seguiu: “Fui até ele calmamente e disse: ‘Você não pode fazer isso; Você não pode deixar o filme antes que ele esteja terminado. O filme é mais importante do que nossos sentimentos pessoais É mais importante até do que nossas vidas privadas. Não é aceitável que você faça isso’. Disse a ele que tinha um rifle e ele não chegaria à curva seguinte do rio antes que tivesse oito balas na cabeça; A nona seria pra mim. (...) Ele sabia que eu estava falando sério, e pelos dez dias restantes de filmagem ele foi muito doce e bem-comportado”. ³

Claro, o sujeito era uma completa pestilência e um pesadelo para se trabalhar junto, mas quem se importa? O importante são os filmes que fizemos juntos.5

Não deixe de ver e rever esse grande clássico do cinema. É o primeiro filme absolutamente obrigatório deste blog. Você vai presenciar o nascimento de dois mitos, um diretor e um ator, que cometerão os maiores absurdos nas duas décadas seguintes e terão seu nome inscrito em qualquer panteão artístico ‘badass’. Aparentemente, e só aparentemente, há menos questões profundíssimas do Ser envolvidas, mas é só porque a abordagem cinematográfica é mais convencional (para os padrões herzogianos)
. Pare o que estiver fazendo (incluindo ler este texto) agora veja este filme.


Curiosidades:

– O filme custou módicos US$ 370.000, sendo um terço disso o cachê de Klaus Kinski. Filmado em apenas cinco semanas (em ordem cronológica, o que explica muito do tom documental da história), sem nenhum storyboard. O segredo da economia foi uma cuidadosa e detalhada pré-produção de nove meses.

– Boa parte do roteiro foi escrita durante uma viagem ébria de 320 km num ônibus que levava o time de futebol de Herzog para uma partida em Viena (Áustria). Um dos jogadores bêbados teria inclusive vomitado no script.

– Entre as habituais cenas que não têm necessariamente a ver com o filme, mas que Herzog encontra pelo caminho e resolve filmar e colocar na película, temos uma adorável preguiça-bebê.

Aguirre... teve recepção fria na Alemanha, até por conta da pouca divulgação, mas tornou-se cult no resto do mundo, e até hoje é um de seus filmes mais conhecidos.

– Percebeu semelhanças entre Aguirre... e Apocalypse Now? Pois não é por acaso. Coppola admite: "Aguirre, com seu imaginário incrível, foi uma influência muito forte. Eu seria negligente se não mencionasse isso" 6. E dez anos depois, Herzog escreveria o roteiro de Fitzcarraldo em oito dias, na casa de Coppola em São Francisco.

– Dos incidentes causados por Kinski, dois foram mais graves: primeiro acertou com uma espada a cabeça de um companheiro de cena na balsa. E este só sobreviveu porque estava usando capacete. Depois, após um dia de filmagens, começou a atirar a esmo com uma espingarda Winchester, e acabou acertando o dedo de um figurante. A arma foi confiscada por Herzog, que a mantém guardada até hoje.


¹ ³ 4 5 HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber. 2000
² Quote do filme

terça-feira, 5 de novembro de 2013

(1971) Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit


Alemanha | 85min | 16 mm |cor
Roteiro, produção, som e direção: Werner Herzog
Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein
Música: excertos de Bach e Vivaldi
Elenco: Rolf Illig (narração), Fini Straubinger, Eise Führer, Ursula Riedmeier, Vladimir Kokol, Heinrich Fleischmann, Resi Mittermaier


Enquanto fazia Behinderte Zukunft, Werner Herzog conheceu Fini Straubinger, uma senhora de 56 anos que perdeu a visão aos 16 e ficou surda dois anos mais tarde. Sem tratamento específico (sob o regime nazista, deficientes deviam se dar por satisfeitos em não serem mortos), permaneceu 30 anos na cama, praticamente vegetando, dependente de morfina, até resolver se virar sozinha: aprendeu o alfabeto tátil, uma complexa linguagem de sinais por meio de toques nas mãos, e passou a visitar surdos-cegos como ela, para que também se integrassem entre si e no mundo.

Com vocês, a incrível Fini Straubinger
O complexo alfabeto tátil

Inspirada em sua incrível história, o diretor resolveu fazer um documentário (o primeiro feito por conta própria, e não por encomenda) sobre o mundo dos surdos-cegos. Em suas palavras: “[Fini Straubinger] me fez pensar sobre solidão com uma magnitude que eu nunca tinha conseguido até então. Em seu caso, a solidão é levada a limites inimagináveis”. ¹

Assim, Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit (Terra Do Silêncio E Da Escuridão) estrutura-se em duas partes: na primeira, triste, porém mais sensível, mostra a vida de Fini e seu trabalho com os que compartilham de sua condição (pessoas que perderam a visão e a audição durante a vida). Já a segunda parte, verdadeiro soco no estômago, foca nos surdos-cegos de nascença, ou seja, aqueles cuja terra-natal é a Terra do Silêncio e da Escuridão.

Que saber como é ser um surdo-cego? Fini Straubinger nos conta: “A cegueira é como um rio negro, correndo feito uma lenta melodia, em direção a uma grande cachoeira. Em suas margens, árvores e flores, e pássaros cantando docemente. O outro rio, vindo do outro lado, é claro como o mais puro cristal, e também corre lentamente, porém sem nenhum som. Lá no fundo tem um lago muito escuro e profundo, onde se encontram os dois rios. Lá tem rochas, que fazem as águas borbulharem, para então deixá-las correrem silenciosa e lentamente. E naquele reservatório sombrio jaz uma calma de morte, somente perturbada por uma onda ocasional – representando a luta do surdo-cego”.

Nota-se que, mesmo com momentos bastante emotivos como os surdos-cegos voando de avião (e se emocionando como se pudessem ver a paisagem) e brincando com os bichos do zoológico, o clima do filme não é exatamente auspicioso. Fini Straubinger se agiganta diante da tela, com sua enorme superação e seu trabalho humanitário, mas sua fala solene e pausada sempre reflete profundíssima melancolia: ela não é daquelas pessoas que encara sua condição com otimismo; apenas procura viver, mais que sobreviver. Sua voz é pura mágoa, completo ressentimento com o isolamento que vive e o que lhe fora imposto nos anos acamada. Ela só quer trazer um pouco de alívio aos que sofrem como ela, um pouco de luz no Abismo.

Seu contato com o mundo é o tato. Para ela, não faz diferença estar rodeada por dezenas de pessoas se ninguém a tocá-la. Como ela diz para Herzog: “Quando você solta a minha mão, é como se estivéssemos a quilômetros de distância”. Não temos como saber sua percepção de espaço-tempo (inclusive ela usa um relógio no pulso, jamais saberemos por quê).
 
Mas é na segunda parte, sobre os surdos-cegos de nascença, que o clima pesa de vez. Destaque para a sequência bastante tensa com um rapaz de 22 anos chamado Vladimir Kokol, que além de ser surdo-cego, tem síndrome de Down, e jamais recebeu tratamento especial, de modo que ele não aprendeu nem mesmo a andar, quanto mais algum tipo de linguagem. Ele fica apenas fazendo barulhos irritantes com a boca e batendo com uma pequena bola de futebol na própria cabeça. A cena é triste, pesada, muito crua, mas nunca gratuita. Então Fini Straubinger surge e tenta estabelecer contato com ele, e vemos a gradação dos isolamentos: até para Fini o mundo de Kokol é impenetrável.

Fini tentando se comunicar com Vladimir Kokol

Com os surdos-cegos de nascença, a princípio incapazes de ideias abstratas, e limitadíssimos em seu contato com o exterior a resposta aos seus estímulos, Herzog nos provoca sobre o quanto a humanidade é definida pela nossa interação social com o mundo ao redor (tal questão já aparecera em Assim como em Letzte Worte). Como será a percepção que eles têm deles mesmos? Eles são menos humanos por inexistirem em linguagem? O diretor complementa: “E a questão de como aprendemos conceitos, aprendemos linguagens, aprendemos comunicações, também está lá. É um tema que também surge muito fortemente em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle [1974], e eu sempre senti que os dois filmes se encaixam bem”. ²

Obviamente não conseguimos saber como é a Terra do Silêncio e da Escuridão – nem teríamos como, uma vez que o cinema é essencialmente sensorial, primordialmente feito de visão e audição. Porém, Herzog mostra tudo com tanta crueza, e ao mesmo tempo com tanta empatia – o filme é cru, pesado, lento, opressivo, sem concessões, mas nunca cai no sensacionalismo ou na exploração dos doentes – que apenas os ecos e as sombras desse mundo de infindável solidão já no assombram para o resto da vida.

Eu mesmo, que já tinha visto o filme havia tempo, levei mais de uma semana para revê-lo: cada sequência pesa uma tonelada sobre o peito. Não tem apelação (pelo contrário, vemos empatia e humildade), mas apenas a visão pessimista e nada bondosa que Werner Herzog tem da existência.

E essa percepção da distância – vislumbramos a superfície do mundo deles, eles vagam sem rumo pelo nosso mundo – que não temos como diminuir, nem ao menos retribuir, nos mostrando de volta, é o que torna o documentário silenciosamente sufocante, duro de mastigar e engolir, mas ainda assim absolutamente tocante.

Para o especialista americano em filosofia da arte Noël Carroll, “a inescrutabilidade das forças que os movem ergue certa distância afetiva, uma espécie de persistente lucidez entre nós e eles. Tais figuras são virtualmente canonizadas por Herzog pela singularidade e inacessibilidade de suas paixões e de suas vidas internas”.³

Solidão e isolamento

No final, temos a cena para a qual todo o documentário é uma preparação, como admite o diretor. Temos Heirich Fleischmann, de uma família de vinicultores, que, uma vez surdo-cego, fora abandonado por todos e acabou indo dormir com os animais do estábulo, em busca de calor e companhia. Não vou entrar em detalhes sobre a sequência, pois ela precisa ser vista, mas, para o crítico americano de cinema J. Hoberman (1948–), “seria difícil imaginar uma ilustração mais enxuta e econômica do que [o filósofo alemão Martin] Heidegger [18891976] chama Dasein [ser-aí, ser-no-mundo], a existência em um mundo sem sentido”. 4

E nas palavras do professor americano de cinema alemão Randall Halle, “Essas cenas não são belas, nem sublimes, ao menos na concepção kantiana; nossa razão não está apta a contê-las e restaurá-las à racionalidade”. 5

 Mais do que um filme sobre a negligência com os deficientes, sobre a superação de Fini Straubinger, sobre os limites da linguagem e do Ser, sobre os sentidos (especialmente o tato), Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit é sobre solidão e isolamento. A solidão de todos nós. O inexorável isolamento da humanidade, que tateia na escuridão em busca de alguém semelhante, que lhe compreenda.

Herzog sintetiza: “As pessoas geralmente respondem tão positivamente ao filme porque ele é sobre solidão, sobre as terríveis dificuldades de ser compreendido pelos outros, algo com que temos que lidar em todos os dias de nossas vidas. E no filme encontram-se a mais radical e absoluta dignidade humana, o sofrimento humano completamente desnudado.6


Curiosidades:

– O filme, feito para a televisão (mais um dos raros 16 mm do diretor) custou apenas US$ 30 mil.

– Nos comentários do DVD do filme, Herzog admite que alguns pensamentos ditos por Fini (especialmente os das cenas inicial e final) são, na verdade, dele.

Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit foi recusado pelas redes de tevê alemãs por dois anos e meio, devido às críticas que acusavam o diretor de explorar a desgraça dos surdos-cegos. Até que o neurologista e escritor britânico Oliver Sacks (1933–2015) defendeu o filme publicamente, o que tornou as críticas mais favoráveis permitiu que o filme tivesse maior visibilidade.


¹ ² 6  HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber. 2001.
³ CARROLL, Nöel. Interpreting The Moving Image. Cambridge University Press, 1998.
4 HOBERMAN, James Lewis. Alien Landscapes, Vol. 26. Village Voice, 1981.
5 HALLE, Randall. Perceiving The Other In The Land Of Silence And Darkness. Em A Companion to Werner Herzog, de Brad Prager. Wiley-Blackwell, 2012.