domingo, 6 de outubro de 2013

(1970) Auch Zwerge Haben Klein Angefangen


                          Alemanha (rodado em Lanzarote, nas Ilhas Canárias) | 96min | 35 mm |p & b
                                                                       Roteiro, produção e direção: Werner Herzog
                                                                                                                     Som: Herbert Prasch
                                                                                            Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
                                                                                                           Fotografia: Thomas Mauch
Elenco: Helmut Döring (Hombré), Paul Glauer (Erzieher), Gisela Hertwig (Pobrecita), Hertel Minkner (Chicklets), Gertrud Piccini (Piccini), Marianne Saar (Theresa), Brigitte Saar (Cochina), Gerd Gickel (Pepe), Erna Gschwendtner (Azucar), Gerhard Maerz (Territory), Alfredo Piccini (Anselmo), Erna Smollarz (Schweppes), Lajos Zsarnoczay (Chapparo), Pepi Hermine (The President)


"Visão sombria de Werner Herzog sobre uma rebelião em uma instituição e do caos resultante. O mundo inteiro é habitado por anões." ¹

Por mais de um minuto, um anão sentado num banquinho, com uma placa de identificação, tenta segurá-la corretamente, girando-a em todas as direções, para que nos números fiquem virados para a câmera, que tenta fotografá-lo para um ‘mugshot’. Não consegue.

Fracasso desde o início

Essa primeira sequência já dá o tom de Auch Zwerge Haben Klein Angefangen (em português, Também Os Anões Começaram Pequenos), seguramente o filme mais bizarro que o alemão já filmou (o que não é pouco, conhecendo seu trabalho).

O filme foi feito na mesma época de Die Fliegenden Ärzte Von Ostafrika e Fata Morgana (que veremos a seguir), mas este teve seu lançamento adiado porque o diretor temia que ninguém fosse se interessar por ele ².

A história é bem simples: num mundo habitado por anões, alguns diminutos delinquentes fogem de um reformatório ou algo parecido e tocam o terror na cidade, contra os mais fracos do grupo, contra quem os aprisionou, e até contra a fauna e a flora ao redor.

Tudo ocorre sem explicações, durante um único dia. As barbaridades vão de coisas simplórias como escarnecer uns dos outros e fazer guerra de comida até incendiar árvores e flores, maltratar e até sacrificar animais, e blasfemar numa inacreditável procissão com um macaco crucificado. Perto da gangue de Anões do Mal, os droogs de Laranja Mecânica parecem os Goonies.

Violência

Ninguém indo a lugar algum

Abram-alas para o Rei Macaco

Para além das possíveis interpretações (rebelião contra opressores, marginalizados no poder, etc.) o que espanta é a inconsequente escalada de violência contra tudo e todos.

Anões feiosos, de voz irritante, em vez de serem objeto de humor duvidoso, como o cinema e a tevê se acostumaram a retratá-los, parecem se vingar de toda a estereotipação e nos causam medo e desgosto por uma hora e meia.

[É bom deixar claro que Herzog jamais trata os grupos marginalizados que escolhe para filmar como algo a ser explorado: aqui, por exemplo, o diretor tem o cuidado de posicionar a câmera na altura dos pequenos atores, pois eles são a normatividade daquele universo, embora sejam retratados de forma totalmente crua (isso ficará bem claro em filmes que veremos em breve, como Behinderte Zukunft e Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit, ambos de 1971).]

Outra coisa bem particular do cinema herzogiano, delineada desde o primeiro curta, aparece aqui de forma madura pela primeira vez: os sentimentos, as reações que o filme provoca na audiência, são mais importantes que o roteiro ou qualquer tese que poderia ser imposta em quem o assiste. Tanto que nós apenas deduzimos que o mundo é só de anões, já que nenhuma explicação sobre espaço, tempo ou contexto nos é dada.

O mundo de Herzog, especialmente neste filme, é um lugar desolado, abandonado, esquecido e cruel, onde a Criação parece ter dado totalmente errado. Até as cenas randômicas de animais, que o diretor encontra por acaso e adiciona aos filmes, parecem mais perturbadoras, como as galinhas (sempre elas) perseguindo uma delas que é perneta, e depois bicando seu cadáver, ou bicando camundongos, para então serem usadas como arma pelos anões ensandecidos. Animais machucando animais, sejam racionais ou irracionais, essa é a visão que o diretor tem da bondosa Natureza (como fica especialmente claro em Grizzly Man, de 2005).

Natureza cruel

O filme é repleto de imagens de persistência e futilidade: em vez de simplesmente fugir e ir cuidar da vida, os anões tornam-se mais violentos e arbitrários do que seus outrora captores; anões cegos ficam a brandir bastões com morcegos de plástico para se defender; um guarda discute com uma árvore morta; uma caminhonete roda em círculos, indefinidamente, sem nenhum progresso, mesmo depois que os delinquentes perdem o interesse nela, gratuitamente feito a destruição aleatória que os anões causam durante o filme; e, no final, com o dromedário feito a caminhonete, enquanto o anão Hombre não consegue rir direito por causa de uma crise de tosse.

Somos todos anões neste mundo, e por isso todos nos vemos no filme, em toda a sua loucura vertiginosa. Os anões surgem patéticos e grosseiros na tela não porque são anões, mas porque são humanos, e a essência da humanidade é gratuita e vazia.

Ira patética

Riso patético

Há um momento em que os presos são contemplam uma “casa de insetos” empalhados numa caixa de charutos, feito uma família absurda, numa clara metáfora para os anões e, por extensão, para toda a humanidade.

Em outra sequência, os detentos alegremente ateam fogo a um monte de vasos com flores. Isso mostra o desprezo pela Natureza, talvez simbolizando a vingança contra o que a Natureza fez com eles. A Natureza os fez anões, a natureza faz com que as galinhas persigam umas às outras, em círculos concêntricos de crueldade sem motivo.

Vários comentários na internet descrevem o filme como uma comédia bizarra, de humor negro. Mas, ainda que o próprio Herzog, em Massnahmen Gegen Fanatiker, afirme que o senso de humor alemão seja peculiar, não vejo como alguém pode achar graça num espetáculo de tanta grotesquidão, que inclui de um anão rindo descontroladamente um dromedário defecando a leitõezinhos mamando numa porca recém-morta. O filme só me trouxe sentimentos de pesar e desolação. Vi toda a existência retratada naquele espetáculo fora de controle, como talvez o diretor só conseguiria em Stroszek (1977).

É estranho lembrar que, poucos anos antes, em Spiel Im Sand, o alemão decidiu pela autocensura quando uma espécie de jogo violento culminava com a morte de uma galinha. Era o embrião de tudo que vemos, de forma muito mais impactante, em Auch Zwerge Haben Klein Angefangen.

Ele mesmo explica por que: "Quando voltei para Lanzarote, para começar a filmar Auch Zwerge Haben Klein Angefangen, eu estava cheio de amargura, afetado pela doença [tentando filmar no México, à época de Lebenszeichen, Herzog fora preso e contraíra malária] e o filme tornou-se mais radical do que eu tinha planejado originalmente. (...) De alguma forma, eu tinha a sensação de que se Goya e Hieronymus Bosch tiveram a coragem de fazer suas obras depressivas, por que não eu?"

A violência insensata fugiu tanto do controle que um dos anões foi atropelado na cena em que a caminhonete sem motorista fica rodando em círculos (tema que seria retornado no supracitado Stroszek) e outro pegou fogo (!) numa das sequências incendiárias. O clima era de tal descontrole que o diretor prometeu aos pequenos atores que pularia num cacto se aquele filme ficasse pronto. Dito e feito (tipo de aposta que se repetiria em Werner Herzog Eats His Shoe (1980), de Les Blank, no qual, aliás, o episódio do cacto é mencionado).

Entre as cenas perigosas que permaneceram no filme, destaque para um dos atores, ainda amarrado a uma cadeira, reagindo com visível pavor, como que esperando por um “corta!” salvador, quando a janela atrás dele é quebrada com pedradas, fazendo voarem estilhaços de vidro, e uma galinha viva é arremessada pra dentro da sala.

Especialmente por conta da procissão do Deus-Macaco, o diretor alemão sofreu censura informal (precisou alugar cinemas na Alemanha para passar o filme) e diversas ameaças de morte (por supostamente parodiar os protestos de 1968, o que Herzog sempre negou) e teve esse capítulo de sua obra proscrita por décadas, com o filme banido de vários países e ficando fora de catálogo, até seu primeiro lançamento em DVD, em 1999. Nos comentários desse DVD, aliás, Herzog admite: “Esse filme é um pesadelo. E estava realmente mergulhado em pesadelos naquela época”.

Apesar da história ficcional, o estilo documental transita também por este filme, visto que toda a violência mostrada na tela é real. A opção pelo preto & branco reforma a crueza que salta dos cenários meio abandonados da ilha.

Até o título parece um desafio: por que a palavra ‘mesmo’, parecendo implicar que os anões seriam as últimas pessoas, e não as primeiras, de quem pensaríamos que surgiram “pequenas”? Porém, de alguma forma, o título soa perfeito para a experiência rude que é o filme. Um trecho do roteiro que está disponível na versão alemã do DVD diz: "O título do filme é puro ‘título de trabalho’ (provisório), não tem nada a ver com o filme; a palavra ‘anões' nem devia aparecer lá...".


Curiosidades:

– o ator principal, Helmut Döring, que faz o anão Hombré, reaparece em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle, de 1974;

– o primeiro filme a utilizar elenco só de anões foi o faroeste The Terror Of Tiny Town, de Sam Newfield (1938);

– os óculos que os anões cegos usam aparecem repetidamente em Fata Morgana;

– a trilha sonora alterna entre uma canção chorosa meio cigana, tocada pelo grupo Popol Vuh, e uma peça de coral nativo africano, sendo que este foi executado por uma menina que Herzog encontrara na ilha e então pediu para que ela cantasse em uma caverna com boa acústica, enquanto ele gravava tudo;

– a cena da caminhonete rodando sozinha em círculos foi repetida, como homenagem, por Danny Boyle em Extermínio (28 Days Later), de 2002;

– este filme, que já fora lançado em VHS no Brasil (não sei se passou nos cinemas à época), está disponível em DVD (não sei a qualidade do lançamento) aqui.


Auch Zwerge Haben Klein Angefangen, tal como tantos outros filmes de Werner Herzog, é difícil de ser descrito apenas em palavras (mesmo com o auxílio de algumas imagens). Parece clichê, e talvez seja, mas é um filme que precisa ser sentido, experimentado.

Não é grotesco pelo grotesco, como nos filme ‘mondo’ ou ‘exploitation’, mas a visão de um diretor obcecado pelo não-usual, pelos outsiders, nas manifestações, em forma e conteúdo, de nossa existência solitária e cheia de gratuidade. 

Não há julgamento de ‘certo’ e ‘errado’, apenas o caos, o abandono. Todas as cenas, em especial o anão discutindo com uma árvore, revelam sobretudo uma imensa solidão, o mesmo isolamento de espírito e linguagem que permeia toda a obra herzogiana.

Daqueles filmes que você curte sem nem saber direito por que, ou mesmo se realmente devia gostar dele. Cinema de pura catarse, cinema-limite. Mórbido, inexorável – e imperdível.

“Auch Zwerge Haben Klein Angefangen talvez seja o melhor ou o mais poderoso [filme que já fiz], no qual há mais força do que todos os meus filmes.4

¹http://www.wernerherzog.com/legacy_shop/main/de/html/films/films_details/index.php?film_id=8
² ³ HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2001.
 4 http://www.kinema.uwaterloo.ca/article.php?id=385&feature

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