domingo, 29 de setembro de 2013

(1969) Die Fliegenden Ärzte Von Ostafrika

                       Alemanha (rodado no Quênia, em Uganda e na Tanzânia) | 12min | 35 mm |cor
                                                                       Roteiro, produção, som e direção: Werner Herzog
                                                       Coprodução: Gesellschaft fur Medizin und Forschung in Afrika
                                                                                            Montagem: Beate Mainka-Jellinghaus
                                                                                                           Fotografia: Thomas Mauch
                Elenco
: Wilfried Klaus (narração), Michael Wood, Ann Spoery, Betty Miller, James Kabale


As cenas mais interessantes decorrem de meu interesse na visão e na percepção.” ¹

Die Fliegenden Ärzte Von Ostafrika ("Os Médicos Voadores Da África Oriental", em alemão) não é um filme convencional de Werner Herzog: foi feito sob encomenda dos amigos Flying Doctors – na verdade a ONG African Medical and Research Foundation (Amref), que visita os recônditos africanos para atender tribos distantes, vítimas da fome, lutas tribais, doenças típicas de países subdesenvolvidos (como poliomielite, pneumonia, malária e tracoma) e enfermidades "simples" como apendicite.

Herzog afirma que fez o documentário em troca de poder filmar imagens aéreas do continente africano. “Deixaram-me voar nos aviões deles e filmar material que nunca teria conseguido filmar de outra forma, material que mais tarde usei em Fata Morgana (1970)”².

Aliás, ‘convencional’ (não para o estilo herzogiano, mas para o padrão cinematográfico) é um bom termo para definir este documentário. É bastante cru, sóbrio e até um tanto monótono. O diretor optou pelo distanciamento: a forma e o conteúdo são frios, formais, diretos, com a intenção de pura e simplesmente mostrar o trabalho dos Flying Doctors no leste africano sem qualquer filtro ou mediação.

[Esse distanciamento, alias, só retornaria à sua filmografia em La Soufrière (1977), como aponta o estudioso de cinema alemão Brad Prager. ³]

O modo árido como o filme se apresenta já no início, quando os tribais em Ortum, no Quênia, vendo um avião pela primeira vez, têm, uma experiência comparável, segundo o narrador, "à aterrisagem da Apolo [na Lua] para nós", lembra um pouco o popular estilo “mondo” de documentário, em que povos subdesenvolvidos são retratados de forma um tanto preconceituosa, e imagens fortes e apelativas são tingidas com verniz cientificista-jornalístico. Mas a impressão logo passa, quando dois temas caros à mitologia herzogiana são apresentados.
Estranhamento

Destaque infame para as fortes cenas de operação, com direito a duas mortes em cena. Apenas da metade pra frente o documentário adquire tom um pouco menos grave, quando aparecem duas características marcantes do diretor: a confusão (no bom sentido) entre ficção e documentário (“excedente de realidade”, como dizem alguns) e um dos temas mais caros ao diretor, a incomunicabilidade entre as pessoas.

O primeiro surge quando os pacientes da tribo queniana masai se recusam a subir os cinco degraus da escada do ambulatório montado na aldeia. Os flying doctors teriam levado dois anos (!) para convencê-los a vencer aquele “obstáculo”, e mesmo assim alguns ainda resistiam. "Depois de furar no meio ou no deserto dos masais, eles percebem que a coisa toda não faz sentido, uma vez que eles se recusam a vencer os cinco passos que levam ao interior do caminhão
4.

Porém, a cena não é filmada espontaneamente, quando acontece. Nas palavras do diretor: “Pedi-lhes que representassem as suas ações para a câmera. Não os dirigi exatamente, mas encorajei-os a darem seu melhor, disse-lhes que tinham que causar boa impressão porque o filme poderia passar na televisão. Tudo isso para ir mais a fundo, para criar uma visão que fosse mais além
5.

A segunda e principal característica do alemão neste filme é a inviabilidade das comunicações humanas. Um garoto é rejeitado pela família por ter sido levado para uma área urbana, onde recebeu tratamento mais especializado, e acaba sendo entregue para adoção, e então se recusa a falar, brincando apenas com as crianças surdas-mudas do abrigo. Além da óbvia ligação com Lezte Worte (1968), o tema da surdez (com o agravante da cegueira) retornaria em breve, com o pesadíssimo Land Des Schweigens Und Der Dunkelheit, de 1971. 

Isolamento de corpo & linguagem

Uma criança morre em cena porque os pais ignoraram a recomendação de não alimentá-lo no pós-operatório e o fizeram escondido da equipe médica. Os membros da tribo ficam cegos, contaminados pelo tracoma, doença transmitida por moscas, porque simplesmente não conseguem entender os signos apresentados pelos médicos.

Temos aqui um problema cognitivo, de não-entendimento da relação significante x significado, que seria explicitada em Jeder Für Sich Und Gott Gegen Alle (no Brasil, O Enigma De Kaspar Hauser), de 1974.

A ilustração de um olho, um olho fora de um rosto, não significa um olho: para eles, parece mais um peixe, ou um sol. Quando veem uma mosca desenhada, dizem que não têm com o que se preocupar, pois não há moscas daquele tamanho ali. Aquelas pessoas não conseguem nem ao menos perceber que um dos cartazes fora colocado propositalmente de ponta-cabeça.

"Aqui não há moscas tão grandes, não tem problema."

Num raro momento opinativo fora da sobriedade e distância que dá o tom do filme, Werner Herzog, na voz do narrador, deixa claro que, “após séculos de colonialismo na África, ainda não chegamos sequer ao começo de como nos comunicarmos; se realmente queremos ajudar, devemos começar com a comunicação, desde muito do princípio”.

Entrevistado, o diretor completa: "Ficou claro seus cérebros estavam processamento imagens de forma diferente. Ainda não consigo entender completamente, só posso dizer que eles veem de forma diferente de nós. Sabemos tão pouco sobre a visão e o processo de reconhecimento de imagens, e como o cérebro classifica e dá sentido a elas, e depois de fazer o filme ficou muito claro para mim que a percepção é de alguma forma culturalmente condicionada, e em diferentes sociedades funciona de maneiras diferentes".
6

Não tem tanto assim a ver com o estilo herzogiano, mas a questão da incomunicabilidade e o importante trabalho dos "médicos voadores" fazem o filme valer muito a pena. Vejam, eu recomendo.

¹ HERZOG, Werner. Herzog On Herzog, de Paul Cronin. Editora Faber & Faber, 2001.
² 5 HERZOG, Werner. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008), de Grazia Paganelli. Editora Indie Lisboa, 2009.
³ PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
4 HERZOG. Werner. Film World: The Director's Interviews, de Michel Ciment. Berg Publishers, 2009.
6 HERZOG, Werner. A Companion To Werner Herzog, de Brad Prager. John Wiley & Sons, 2012.

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