sexta-feira, 22 de outubro de 2021

(2009) My Son, My Son, What Have Ye Done


EUA (filmado também no México, no Peru e na China) | 91min | HDcam | cor
Roteiro: Herbert Golder e Werner Herzog
Direção: Werner Herzog
Produção: Jimmy Balodimas, Eric Bassett, Herbert Golder, Bingo Gubelmann, Keith Kjarval, Benji Kohn, David Lynch, Giulia Marletta, Ken Meyer, Julius Morck, Stian Morck, Paul E. Noack, Chris Papavasiliou, Jeff Rice, Ali Rounaghi, Jack Sojka, Rick Spalla, Austin Stark
Montagem: Joe Bini e Omar Daher
Som: Greg Agalsoff, Alex Bushe, David A. Cohen, Ronald Eng, Luke Gibleon, Dean Hurley, Mark Jennings, Willard Overstreet, Robin Harlan, Klint Macro, Sarah Monat
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Ernst Reijseger
Elenco: Michael Shannon, Willem Dafoe, Chloë Sevigny, Udo Kier, Grace Zabriskie, Loretta Devine, Irma P. Hall, Michael Peña, Brad Dourif, Dave Bautista, James C. Burns, Noel Arthur



“Um filme de terror sem sangue, motosserras ou sangue coagulado, mas com um medo estranho e anônimo tomando conta de você. 1

É assim que Werner Herzog, em seu site oficial, define My Son, My Son, What Have Ye Done (em português, ‘Meu Filho, Olha O Que Fizeste!’), filme inspirado na história verídica do assassino Mark Yavorsky, que, em 1979, matou a mãe golpes de sabre.

Estudioso e jogador de basquete promissor, Yavorsky também tinha futuro promissor em artes dramáticas na faculdade, até abandonar o campus e sair do elenco do drama de Orestes, o matricida de Eurípedes, em aparente surto psicótico. E assim se deu o crime, tal e qual na encenação.

E o filme já começa introduzindo esses elementos reais e mais uns imaginados: o detetive que chega à cena do crime de matricídio (com direito a reféns na casa) – cometido por um homem que enlouqueceu após ‘ouvir a voz de Deus’ durante uma estada no Peru e resolver imitar a peça teatral que encenava –, a passiva esposa e o eloquente professor de artes cênicas do criminoso.

Willem Dafoe faz o investigador que conecta as duas linhas do filme: o presente, com os policiais negociando com o assassino vivido por Michael Shannon e buscando pistas/explicações com a esposa, Chloë Sevigny, e o professor, Udo Kier; o passado, com a mãe do protagonista, interpretada por Grace Zabriskie, superprotegendo e atormentando seu filho à exaustão e na mesma medida, culminando na união cruel entre talento artístico e pulsão de morte.


Michael Shannon, ótimo como Yavorsky


Embora incensado como uma parceria entre Werner Herzog e David Lynch (que eu nem curto, mas enfim), a realidade é bem menos empolgante: Lynch é só um dos produtores, e na prática é mais uma oportunidade que o alemão usou pra conseguir dinheiro que financiasse seus projetos mais pessoais.

Então, no geral, My Son, My Son, What Have Ye Done navega pelas águas fílmicas como um Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans, só que sem um filme original para comparação e com uma história bem mais interessante.

Como diz o crítico norte-americano de cinema Jeff Shannon: “É também uma bagunça principalmente incoerente, mas isso não o impede de ser uma curiosidade divertida como a obra anterior de Herzog, Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans. (...) “É tudo alimento para um passeio sem rumo, mas amigável, através das preocupações estabelecidas de Herzog, incluindo um desvio do homem contra a natureza para o Peru.2

O jornalista britânico especializado em cinema Zan Brooks acrescenta: “O diretor parece mais interessado em pegar um gênero de filme - neste caso, o thriller de investigação policial - e reduzi-lo a seus componentes básicos; quebrar o molde para deixar a estranheza sangrar. O ritmo é glacial e as emoções que existem vêm da estranheza.” 3

Sabemos a preguiça que Herzog tem com filmes ‘de estúdio’ e que ele não é exatamente hábil com narrativas convencionais. Há bons momentos no filme: tem flamingos, de verdade e de mentira, e flamingos sempre são bem-vindos; Michael Shannon entrega um personagem convicente e cheio de camadas (ainda que mal exploradas); a direção crua, feito documentário, encaixa na história, e o tom geral da projeção é cinzento e melancólico.

Porém, é tudo muito estereotipado: o policial experiente, sempre com ar de que sabe tudo e viu tudo nessa vida de crimes; o diretor de teatro entre o afetado e o paternal com seus alunos; a esposa unicamente como vítima das circunstâncias, que nada pode contra as desrazões do marido ou da sogra; a mãe superprotetora que trata o filho como um bebê crescido; o protagonista que endoidece com ares de ‘sabedoria que ninguém atinge’ – e seu enlouquecimento é episódico (por meio de flashbacks) e mal resolvido.


Como afirma Zan Brooks, esse ir e vir de acontecimentos, cenários e personagens, tudo meio frouxo (tal como em Bad Lieutenant...), “engana e exaspera em igual medida. A experiência é mais ou menos como assistir a um filme barato na TV enquanto toma uma medicação pesada. Começa-se a fixar-se em detalhes aparentemente descartáveis ou a detectar uma poesia turbulenta nas linhas de diálogo mais banais”. 4

É inegável que, tal como no filme anterior, Herzog está se tanto divertindo com os clichês quanto falhando em subvertê-los totalmente: falei bem dos flamingos, mas não fica explicada a obsessão da mãe [e, conseguentemente do filho] por eles; outros signos, como espelhos e travesseiros, também parecem gratuitos; a ligação com o basquetebol aparece jogada no final do filme; e tem até uma cena absurda/psicodélica? à “cena das iguanas” de Bad Lieutenant..., além de uma tentativa de quase-humor no encerramento do filme.

Claro que o crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942–2013) exagera nas qualidades da obra, mas não deixa de ter sua razão: "
My Son, My Son, What Have Ye Done, de Werner Herzog, é um exemplo esplêndido de um filme que não está no piloto automático". (...) por outro lado, confunde todas as convenções e nega todos os prazeres esperados, proporcionando, em vez disso, o deleite de assistir Herzog colocar a fórmula do refém x policial no liquidificador de sua imaginação. É como se ele começasse com o esboço de um procedimento policial incrivelmente rotineiro e dissesse 'para o diabo, vou pendurar minha fantasia neste varal'”. 5

Enfim, não é ruim como o filme anterior – até pela ausência de Nicolas Cage – mas faltou mais carinho com o que o filme tem de bom, além do elenco e do ótimo plot: a deterioração mental e o pseudomessianismo do personagem e o tom de inevitabilidade, de tragédia grega, que permeia toda a projeção.


Entregue ao papel


Pode-se argumentar que My Son, My Son, What Have Ye Done é coerente com a obra herzogiana por apresentar um personagem louco e megalomaníaco; isso pode explicar o interesse do diretor pela história, mas Yavorsky, por mais interessante que seja, está muito distante da grandeza de um Stroszek, por exemplo.

Como resumiu Roger Ebert: “Ora, a impaciência do diretor com as convenções, é isso”. 6

Até o próximo episódio da #MaratonaHerzog, de volta aos documentários, com Cave Of Forgotten Dreams.


Curiosidades:

– Durante anos, a sanidade de Yavorsky foi assunto de disputas jurídicas: um juiz o considerou inocente por insanidade, e o assassino passou anos no Patton State Hospital, no condado de San Bernardino;

–  após anos entrando e saindo de abrigos e casas de custódia, Mark Yavorsky morreu em 2003, aos 58 anos;

- o projeto começou com um roteiro do assistente de diretor de Herzog, Herbert Golder, em 1995, e ficou parado até ser sugerido para David Lynch num encontro entre os dois cineastas;

– Herzog afirmou que cerca de 70 por cento do roteiro é falso, por ele e Golder desejaram se desviar dos eventos verdadeiros e, em vez disso, focar no estado mental do personagem principal;

– a casa onde ocorre a “ação presente” do filme fica em Point Loma, San Diego, perto de onde Yavorsky morou, o que deixou os Shannon e Zabriskie entusiasmados, embora o produtor Eric Bassett diga que a escolha do local foi por razões financeiras, e Herzog, que foi simplesmente questão de conveniência (?);

– essa locação é muito perto do Aeroporto Internacional de San Diego, o que às vezes tornava as filmagens difíceis, com membros da equipe posicionados no telhado com binóculos para alertar a tripulação sobre os voos, que atrapalhariam a captação de som das cenas;

– algumas cenas foram filmadas no Rio Urubamba, no Peru – local apreciado por Herzog e que apareceu em Aguirre, Der Zorn Gottes e Fitzcarraldo – em vez do Rio Braldu, no norte do Paquistão (onde Yavorsky realmente teve uma viagem que mudou sua vida), por razões de segurança;

– a sequência de Shannon vagando por um mercado ao ar livre lotado (cena sem vínculos narrativos com o resto da história) foi filmada em um mercado em Kashgar, região autônoma de Xinjiang Uygur, na China, por Herzog e o produtor Eric Bassett, ambos com visto de turista e uma pequena câmera digital, a fim de evitar o longo processo de obtenção de licenças para fimagem no país;

– naquela que é provavelmente a sequência mais surreal do filme, temos a clássica canção mexicana Cucurrucucú Paloma (Tomás Méndez, 1954) na célebre versão de Caetano Veloso.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

(2009) Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans

EUA | 122min | 35 mm | cor
Roteiro: William Finkelstein
Direção: Werner Herzog
Produção: Stephen Belafonte, Randall Emmett, Avi Lerner, Alan Polsky, Gabe Polsky, Edward R. Pressman, John Thompson
Montagem: Joe Bini
Som: Joshua Adeniji, Michael Baird, Robert Dehn, Jason Dotts, Levent Erdogan, Brent Findley, Allie Fitz, Jason Gaya, Judah Getz, Corey J. Grasso, Richard Kitting, Tiffany Lentz, Jay Meagher, Zach Michaelis, Randy Pease, Walter Spencer, Jonathan Wales
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Mark Isham
Elenco: Nicolas Cage, Eva Mendes, Val Kilmer, Alvin Joiner, Fairuza Balk, Shawn Hatosy, Jennifer Coolidge


"What are these fucking iguanas doing on my coffee table?"

A #MaratonaHerzog às vezes exige grandes sacrifícios, como ver um filme ‘franquia de produtor’ convencional – e sabemos como o alemão é preguiçoso com filmes ‘normais’, ainda mais quando não são projetos dele –, e estrelado pelo pior ator de todos os tempos.

Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans (no Brasil, ‘Vício Frenético’) é uma espécie de reimaginação – picaretagem dos produtores – do cult Bad Lieutenant, de 1992, dirigido por Abel Ferrara e estrelado por Harvey Keitel. Em comum, ambos têm apenas o tema ‘policial on drugs muito louco’; assim como fiz com Nosferatu, vou analisar o produto herzogiano independentemente do filme original, sem qualquer comparação.

O filme começa prosaico e apressado: New Orleans, pós-Katrina, o detetive Terence McDonagh vai salvar um detento que está se afogando em um presídio alagado e acaba lesando a coluna; sem mais explicações sobre o salvamento ou a lesão, o médico lhe prescreve Vicodin® pra vida toda, simples assim. Seu ato de bravura, pelo menos, rende a promoção a tenente. Corta pra um ano depois e ele já está viciado em cocaína. Uma família de imigrantes africanos é chacinada, aparentemente por traficantes de drogas, e Terence é nomeado para liderar a caça aos culpados. E é aí que reside o conflito do filme, pois seu envolvimento progressivo em atividades ilegais – drogas, prostituição, apostas – não apenas vai colocar a missão em risco, como também comprometer seriamente sua bússola moral.

Loko

Além do dinheiro, claro, dá pra entender o que atraiu Herzog para esse projeto: o protagonista é imprevisível e caótico, se enrolando cada vez mais devido a sua falta de limites, e Nicolas Cage, a despeito de suas óbvias limitações, se entrega ao papel, como um Klaus Kinski de baixo orçamento que não causa problemas no set de filmagem.

O próprio diretor nos conta: “Nicolas me perguntou: ‘O que o torna tão mau? São as drogas, é o Katrina?’ Não, eu disse. Existe uma coisa chamada bem-aventurança do mal. Aprecie isso. Quanto mais vil e degradado, mais você tem que se divertir”. 1

Não tem muito o que elucubrar sobre o filme, que se desenvolve de forma convencional, até meio frouxa (talvez com meia hora a menos ou melhor equilíbrio entre os atos do filme); a investigação segue quase de forma episódica, sem aquela tensão crescente de que o filme precisaria.

Basicamente o protagonista se envolve com bandidos, pede e deve favor a eles, intimida suspeitos, ameaça testemunhas (mesmo que sejam velhinhas doentes), achaca usuários de drogas (anônimos ou famosos), faz armações com prostitutas e apostadores ilegais. Não fossem os exageros de Nicolas Cage, sempre muitos tons acima (mesmo para um personagem tão degradado), poderia ser qualquer filme policial dos inícios dos 1990s.

Muito loko

E, claro, exceto por três cenas, a de um tiroteio à Scarface, que tem desfecho surreal e surpreendente, a de um crocodilo olhando em primeira pessoa, e pela famosa ‘cena das iguanas’, em que o policial, de tão alucinado, começa a ver répteis cantando (!) em sua mesa de trabalho. São dois momentos em que surge o distorcido humor bávaro do diretor, mostrando que não apenas o ator principal estava se divertindo na empreitada fílmica.

O segundo e mais infame eu até imagino a cara dos produtores – e donos do projeto episódica – quando isso foi gravado. Herzog nos conta: “As iguanas, por exemplo, foram ideia minha. Achei que as drogas estavam destruindo a mente de Terrence. Então, vamos deixá-lo ver iguanas. Vamos fazer a iguana cantar”. 2

Segundo Nicolas Cage, a epifania de Herzog aconteceu em uma festa no meio das filmagens. "Werner bebeu alguns drinques. Ele disse com uma voz perturbada: 'As iguanas são a melhor coisa do filme. E devo ter meus cinco minutos de iguana-time! E se eu não tiver meus cinco minutos inteiros de iguana-time, nunca mais farei outro filme!’” 3

Sem dúvida, os momentos supracitados são de impacto, ainda que surjam deslocadíssimos. Se o filme ainda fosse inteiro nessa toada, mas parece que o diretor apenas fez inserções doidas num roteiro convencional já pronto (aliás, não parece, foi isso mesmo).

A cinematografia é aquele desleixo estiloso herzgiano de sempre para filmes 'normais'; a trilha sonora, no geral, não ajuda nem atrapalha, e as atuações são OK. Mas, é claro, precisamos falar da célebre? atuação de Nicolas Cage, que virou até memes: já disse acima o que acho desse ator lamentável, e tive que me encher de boa vontade para este capítulo da #MaratonaHerzog quando vi que era um filme sob encomenda e com ele pintando & bordando. Mas sim, fui com Jesus no coração assisti-lo. Nos momentos de dor, faz cara de prisão de ventre e anda como se tivesse esquecido o cabide dentro do largo paletó. Quando quer demonstrar alteração por entorpecentes, arregala os olhos, mostra os dentes, parecendo, sei lá, que sujou as calças. Ele, inegavelmente, está se divertindo. Werner Herzog, certamente, também. Eu, já nem tanto.

A crítica, surpreendentemente, elogiou o filme (talvez por condescendência para com o mítico diretor?); o crítico norte-americano de cultura A. O. Scott, por exemplo: “Quem precisa de um Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans – por que ‘Port Of Call’? o que isso significa? – não é uma obra-prima, mas é, sem dúvida, a obra de um mestre. Por quase 40 anos, o Sr. Herzog perseguiu a loucura e a irracionalidade em várias manifestações – ele as encontrou, de forma mais confiável, na pessoa de Klaus Kinski – e às vezes sucumbiu ao fascínio delas. Ultimamente, ele amadureceu um pouco, examinando almas obsessivas e motivadas por meio de lentes documentais ruminativas e analisando suas paixões com um distanciamento irônico e simpático. (...) A atmosfera está impregnada de corrupção e vício, e por mais maluco que o filme às vezes seja, sua brutalidade e confusão nunca são usadas para rir. Tem uma sinceridade distorcida e uma energia que continua e continua”. 4

Também o célebre crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (2013–1942), que provavelmente nunca desgostou de um filme do alemão: “Os detalhes do crime não precisam nos preocupar. Apenas admire a sensação do filme. Herzog, como sempre, procura os detalhes estranhos. Todo mundo está falando sobre as fotos das iguanas e do crocodilo, olhando com olhos frios de réptil. Quem mais, a não ser Herzog, sustentaria seu olhar? Quem mais os colocaria em primeiro plano, colocando a ação em segundo plano? Quem, a não ser Cage, poderia olhar uma iguana de lado com um olhar de suspeita e inquietação? Você precisa ficar de olho em uma iguana. As desgraçadas estão sempre tramando alguma coisa. (…) Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans não é sobre enredo, mas sobre tempero. Como a culinária de Nova Orleans, ela descobre que você pode colocar quase qualquer coisa em uma panela se adicionar os temperos e pimentas certos e cozinhá-los por tempo suficiente.” 5


Loko mesmo


O diretor também apreciou a recepção dos espectadores: “Nunca experimentei uma reação tão intensa a um dos meus filmes. O público pegou todo o humor negro e os detalhes sutis. Houve mais risos no meu filme do que em uma comédia de Eddie Murphy. O filme não é uma comédia, mas tem muito humor ácido”. 6


Se o filme vale a pena? Talvez se você for fã do filme original, e quiser comparar as versões, ou ser gostar muito de Nicholas Cage, ou de Val Kilmer, ou de Eva Mendes, ou mesmo do rapper (e apresentador do Pimp My Ride) Alvin "Xzibit" Joiner; fora isso, tem filme policial melhor e mais bem resolvido na praça (ainda que não seja a porcaria que eu esperava). Mas talvez eu seja apenas uma réptil amargo, afinal, como disse o crítico e diretor britânico de cinema Jonathan Romney, “De alguma forma, Herzog fez um dos thrillers mais divertidos e simples que saíram dos Estados Unidos em algum tempo. Você teria que ser uma iguana, ou Abel Ferrara, para não gostar”. 7



Curiosidades:

– o próprio Abel Ferrara foi a primeira opção para esse filme, mas se recusou a trabalhar com o roteiro de William M. Finkelstein, escritor e produtor de séries como Law & Order e NYPD Blue (no Brasil, “Nova York Contra o Crime”);

– o temperamental Ferrara não gostou nada de o projeto continuar sem ele, e, quando o filme foi lançado, disse coisas como "Desejo que essas pessoas morram no inferno, espero que todos estejam no mesmo bonde e ele exploda"; 8

– Herzog tratou de se defender, dizendo que não era um remake, que não tinha nem visto o Bad Lieutenant original, e que ainda colocou o subtítulo Port Of Call New Orleans justamente para diferenciar as obras, já que era contra a ideia de dois filmes diferentes com o mesmo nome, e enfatizou que “Ferrara tem o direito de ficar com raiva, mas este não é um remake, ele tem vida própria”. 9

– talvez percebendo que se exaltou com um colega de profissão, Ferrara ponderou que seu problema era com os produtores, dizendo “Não tenho problema com Werner; quanto a Nicolas, eu nunca poderia ter um problema com um ator, sabe o quero dizer?, como diretor, me sinto pai de todos os atores ou irmão deles”; 10

–  o alemão encerrou a polêmica com “Gostaria que Abel Ferrara visse meu filme, e se eu souber que ele assistiu ao meu, prometo que assistirei ao dele”; 11

Bad Lieutenant foi rodado em apenas 22 dias, para aproveitar a janela na agenda do protagonista;

– Em menos de um ano, o diretor terminou Bad Lieutenant: Port Of Call New Orleans, o também longa-metragem My Son, My Son, What Have Ye Done (próximo capítulo da #MaratonaHerzog), o curta-metragem sob encomenda para a tevê inglesa La Bohème¬ (que mistura Puccini com a vida dura na África e pode ser visto aqui, traduziu para o inglês seu diário fitzcarraldiano – que se tornou o livro Conquest Of The Useless ["Conquista Do Inútil", em português], fez narração para o curta Plastic Bag, de Ramin Bahrani, e ainda lançou seu próprio curso de cinema (Rogue Film School, em Los Angeles);

– curiosamente, Herzog fez uma ponta não creditada
(como ele mesmo, em imagens de arquivo) em Dangerous Game (Olhos De Serpente), de 1993, de Abel Ferrara;

– apenas uma das iguanas do filme é realmente uma iguana, o outo réptil é uma pogona, também chamada de dragão-barbudo.


1 https://www.interviewmagazine.com/film/werner-herzog-bad-lieutenant
2 6 8 9 https://www.vulture.com/2009/09/director_werner_herzog_on_the.html
3 https://www.latimes.com/archives/la-xpm-2009-nov-15-ca-bad15-story.html
4 https://www.nytimes.com/2009/11/20/movies/20badlieutenant.html
5 https://www.rogerebert.com/reviews/bad-lieutenant-port-of-call-new-orleans-2009
7 https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/films/reviews/bad-lieutenant-werner-herzog-122-mins-18-1980349.html
10 11 https://www.reuters.com/article/cultura-filme-veneza-herzog-ferrara-idBRSPE5880D420090909

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

(2007) Encounters At The End Of The World

EUA (rodado na Antárdida) | 99min | HDcam | cor
Roteiro, direção e som: Werner Herzog
Produção: Discovery Films
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Henry Kaiser, David Lindley
Elenco: Werner Herzog (narrador)


Quando ele [Herzog] desceu de um avião de transporte na Antártida para filmar Encounters At The End Of The World, levava consigo as Geórgicas de Virgílio – um livro que lhe trouxe clareza. Esse clássico agora é leitura obrigatória de seus estudantes de cinema em Los Angeles. 'Eu não sabia nada e não conhecia ninguém. Como é que a gente vai explicar um continente todo em seis semanas?' Decidiu-se a fazer o que Virgílio faz: 'Ele não explica nada, não é didático. Ele só fala da glória das macieiras e das colmeias e dos horrores da peste. Eu pensei: Nós vamos falar aqui, no gelo, da glória desta Antártida! E pessoas que nos sensibilizam vão contar algo a esse respeito'. 1

Herzog já chega avisando que este não é “mais um documentário sobre pinguins fofinhos” – como se alguém fosse esperar isso dele. Por mais que haja pinguins, focas [ainda que em situações não exatamente edificantes] e outros animais não tão fofinhos assim [os subaquáticos das profundezas], como também magníficas paisagens de pura vastidão do fim do mundo, permafrost acima e permafrost abaixo, o interesse do bávaro, pra variar, é outro, nunca o óbvio.

A pergunta com a qual ele desembarca na feiosa base norte-americana, a Estação McMurdo, é: por que alguém larga tudo por aqui e vai morar no fim do mundo? E o interesse especial não é nos pesquisadores, que passam grandes temporadas na Antárdida, mas em ‘gente comum’ que trabalha e se estabeleceu lá com trabalhos sem glamour. De filósofo a banqueiro, tem todo tipo de pessoa, com história ordinárias ou incríveis, operando escavadeira, fazendo solda ou sendo motorista de ônibus.  

Como diz a crítica norte-americana de cinema Manohla Dargis, “Herzog abre sua mente, coração e olhos para todos esses viajantes que - apesar da tensão persistente de melancolia que atinge cada pessoa que aparece na câmera - parecem assustadoramente em paz no fundo do mundo. Um dos motivos pode ser que, como Herzog, mais do que alguns evidenciam um profundo pessimismo sobre o presente e o futuro”. 2

Tudo bem que às vezes o diretor perde a paciência e resume as histórias malucas de como os pesquisadores foram parar lá, mas vamos, no geral, concordar com ela e com o crítico suíço [radicado nos EUA] de cinema Owen Gleiberman: “Ele quer que vejamos como esses pesquisadores peculiares, em sua ânsia de explorar, estão agindo de acordo com um impulso tão primitivo quanto a natureza: a necessidade de se afastar do mundo para encontrá-lo”. 3


planeta-hostilidade

Aqui temos um elemento-chave para talvez compreendermos o cerne do filme. Ninguém dá uma boa explicação do tipo “vim parar aqui por isso e isso”, são sempre várias hipóteses jogadas, como se nem eles soubessem por que estão lá, ou como se fosse absolutamente normal, como qualquer outro destino, físico ou spiritual, da vida. Herzog os define como “sonhadores profissionais”: envolvidos por suas respostas vagas e intrigantes, e vendo o diretor questionar o que levou, leva e levará o ser humano sempre em busca do desconhecido – destaque para imagens da épica expedição de Ernst Shackleton [1874–1922], cuja cabana segue preservada até hoje na Antárdida que ele tentou conquistar – ficamos pensando na repetição de expressões, por parte dos entrevistados, de termos como “cair da borda do mundo” ou “chegar ao final do mapa”. Para eles, é simplesmente pela liberdade de poder estar lá.

Esse “por que não?” reúne tais pessoas num sentido de solitude e desapego semelhante ao de monges enclausurados – não à toa, a trilha sonora é basicamente constituída de música cristã ortodoxa, e o próprio Herzog confirma a motivação: “Alguns dos mergulhadores, antes de entrarem no gelo, falam brincando sobre ‘entrar na catedral’. Há uma sacralidade estranha em algumas dessas paisagens debaixo d'água ou fora dela. É muito, muito estranho, e por meio dessa música do coro da Igreja Ortodoxa Russa você de repente entende e começa a ver. A música nos permite ver isso”. 4

Enquanto essas questões vão e vêm, vemos neste filme um resumo do pensamento de Werner Herzog Stipetić: embora mais solene e menos caótica e despropositada do que de costume, a natureza surge monolítica, impenetrável, solene e hostil. Não é um lugar onde deveríamos estar: somos presas facílimas tanto para as brutais intempéries quanto pras fantasmagorias que nadam sob nossos pés gelados.

Temos sequências totalmente bizarras, como o treinamento contra nevasca, que consiste em exploradores com baldes na cabeça [e cada um tem uma carinha desenhada], unidos por uma corda, simulando uma situação de visibilidade próxima a zero e nenhuma noção de espaço e distância; personagens com falas ora profundíssimas, ora nonsense, que nos deixam sempre com a dúvida se são reais ou inventadas pelo diretor; e cenas claramente encenadas como pessoas deitando na neve para ouvir os ruídos das focas “que parecem música eletrônica ou algo do pink Floyd”.

homens-balde


E todas as pessoas que parecem no filme, dos finados exploradores Schackleton e Roald Amundsen [1872–1928] aos trabalhadores das estações de pesquisa, são claramente personagens herzogianos por definição: grandiosos e absurdos. O espírito explorador como destino natural do homem. E é por esse prisma que chegamos à questão final de Encounters At The End Of The World: falamos do fim geográfico do mundo, falamos do destino de casa pessoa, agora Herzog começa a discorrer sobre nosso fim no mundo; qual o sentido de estarmos aqui e fazermos o que fazemos?, e, mais do que isso, como lidar com nosso deixar-de-existir individual e coletivo, spiritual e cultural?

Estamos aqui e fazemos parte da natureza, inclusive interferindo nela – é assustadora a simulação por computador de como a Antárdida deixou de ser um infindável maciço impávido para tornar-se ele mesmo um iceberg que despeja seus enormes glaciares no oceano – mas podemos deixar de existir, seja por nossa interferência, ou, como crê o alemão, por uma catástrofe fortuita como a que extinguiu os dinossauros e permitiu que surgíssemos e sobrevivêssemos.

Nós, nossos sonhos, nossa cultura, até nossa linguagem, tudo morreu, more, morrerá. A natureza, de qualquer forma, permanecerá, se recuperando, como sempre faz. E é aí que Herzog tem o provável momento de maior humanismo de sua cinematografia: questiona que, não fossem essas pessoas na infinitude gélida, aquilo seria apenas um grandíssimo ponto no mapa – mas, ainda sim, só um ponto – desconhecido. Trata-se, curiosamente, de um ponto de vista semelhante ao cristão, de que Deus fez o homem para que o conheça e o ame.

E o que fazer até nossa extinção [individual ou como espécie]? A [não-]resposta está na amarga sequência em que um pinguim desnorteado [“enlouquecido?”] se desgarra do bando e vai continente adentro, se afastando da sobrevivência junto ao mar e à espécie e abraçando a morte inevitável.


pinguim-absurdo

Assim como temos personagens herzogianos humanos – o crítico britânico de cinema Peter Bradshaw aponta que talvez “uma foto antiga do navio de Ernest Shackleton preso no gelo lembrava a Herzog de um navio a vapor sendo arrastado por uma montanha5, temos esse Pinguim-Aguirre, rumando, insano e só, para o vazio e a última derrota. Talvez estejamos todos rumando, desde sempre e para sempre, nesse infindável caminho a lugar algum, a qualquer lugar, a todos os lugares.

Melhor filme desta maratona desde Grizzly Man. Consegue trazer tudo que o diretor tem de melhor. Vai ao mesmo tempo te entreter e te deixar com muitas questões na cabeça. Recomendo muitíssimo, é imperdível. E até 2021, que tem mais #MaratonaHerzog



Curiosidades:

- Herzog esteve por quase sete semanas na Antártida, mas a primeira delas foi gasta tanto em burocracia quanto em treinamentos de sobrevivência - sem os quais você não é autorizado a deixar a base -, então houve um mês e meio para as filmagens;

- a cena de cientistas colocando seus ouvidos no gelo para ouvir os chamados de focas foi inteiramente encenada - Herzog pediu que eles se posicionassem de acordo com suas instruções, e os sons foram previamente gravados por microfones subaquáticos pelo compositor e engenheiro de som Douglas Quin;

- o filme é dedicado ao renomado crítico norte-americano de cinema Roger Ebert (1942-2013), que, justamente por isso, não pôde resenhar o fime, mas escreveu uma carra ao diretor, posteriormente tornada pública;

- Encounters At The End Of The World concorreu ao Oscar de Melhor Documentário em Longa-Metragem de 2009;

- executivos do Discovery Channel ficaram descontentes com os comentários do diretor sobre "a abominação dos estúdios de aeróbica e turmas de ioga" na Antártida, assim como referências ao Darwinismo (!), e, diante da negativa de Herzog retirar tais trechos, os chefões do canal resolveram distribuir o filme por um décimo do que havia sido investido;

- Herzog foi atraído para a Antártida depois de ver imagens subaquáticas filmadas por Henry Kaiser – filmadas tanto em expedições científicas quanto em seu projeto Slide Guitar Around the World –, que durante os trabalhos na trilha sonora de Grizzly Man, estava mostrando a filmagem para um amigo quando Herzog percebeu;

- dois anos depois desse ocorrido, Herzog lançou The Wild Blue Yonder, que fez uso proeminente das filmagens de Kaiser.

terça-feira, 9 de junho de 2020

(2006) Rescue Dawn


EUA | 126min | 35 mm | cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Irma Strehle
Som: Paul Paragon
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Klaus Badelt, Ernst Reijeger, Popol Vuh
Elenco: Christian Bale (Dieter Dangler), Steve Zahn (Duane Martin), Jeremy Davies (Gene DeBruin), Marshall Bell (almirante), François Chau (governador da província), Craig Gellis (cabo), Zach Grenier (sargento), Pat Healy (Norman), Toby Huss (Spook)


De certa maneira, Rescue Down, a ideia do longa, sempre esteve em primeiro lugar. Quando conheci Dieter, tive a sensação de que essa era uma história grandiosa, com um personagem de dimensões heróicas. Mas, como foi preciso bastante tempo para juntar o dinheiro para o longa, fizemos o documentário primeiro.1

Lembram de Little Dieter Needs To Fly, documentário feito pra tevê alemã sobre o alemão Dieter Dengler (1938–2001), piloto de avião que se alistou na aeronáutica americana, e em uma missão no Laos, às portas da Guerra do Vietnã, foi abatido e feito prisioneiro, sofrendo cruelmente na mão dos captores até conseguir fugir através da selva?

Pois Rescue Dawn (no Brasil, O Sobrevivente) é um filme sobre a mesma história, concentrado unicamente no período que compreende sua queda, seu aprisionamento e sua fuga. Não tem muito o que dizer além disso sobre a história, visto que tudo está bem detalhado no post linkado acima, sobre o documentário. Então, pra este texto não ficar repetitivo ou banal, recomendo uma lida lá antes de prosseguirmos aqui. Feito isso, continuemos.

Herzog insiste, em diversas entrevistas à época do lançamento do filme, na necessidade de duas versões da mesma história: “Quando eu assisti ao filme pela primeira vez com Dieter, as luzes se acenderam e ele se virou para mim. ‘Werner’, ele disse sem perder o ritmo, ‘este é um assunto inacabado’. A história de Dieter e Duane sempre foi a que eu queria contar em um filme, uma história de amizade e sobrevivência. Apesar de Rescue Dawn ter ficado em segundo lugar, em espírito foi realmente o primeiro filme. Little Dieter... foi fortemente influenciado por um longa-metragem que ainda havia sido feito”. 2

Além disso, o diretor sempre fez questão de justificar a inclusão de Rescue Dawn em sua mitologia fílmica, de modo que não fosse desnecessário ou inadequado à sua cinematografia: “Para mim, as paisagens e a natureza sempre formam uma oposição a nós. Por exemplo, a selva em Fitzcarraldo é o lugar dos sonhos febris da imaginação, do mistério, do inacreditável. É como se a selva fosse uma qualidade humana. No caso de Rescue Down, eu diria que o filme é muito físico. Você vê os prisioneiros que escapam abrindo caminho em meio à mata mais cerrada, os cipós mais grossos. É uma selva que é quase impossível de se atravessar. Você olha para ela e se pergunta como um ser humano conseguirá penetrar nela um metro sequer, mas eles estão entrando, e a câmera está logo atrás. É quase como se nós, como plateia, fôssemos mais um fugitivo, ao lado deles. Então é uma qualidade direta que é muito física, algo do qual gostei muito.” 3



Um dia especialmente ruim

Em entrevista à estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli, Herzog dá mais uma pista para o que ele considera o filme e o documentário como obras complementares: “'Tivemos muito cuidado para reconstituir e estilizar a realidade de Dieter. Era necessário que se transformasse num ator que representa a si próprio', explica Herzog, a propósito do método de trabalho desse filme, e novamente escolhe intensificar a realidade a inventar histórias sugeridas por pormenores e detalhes reais”. 4 Grazia acrescenta: “O fato de essa história ter se tornado um filme de ficção clarifica ainda mais o percurso de estilização em que insiste o diretor alemão”. 5

O crítico britânico de cinema Jonathan Romney concorda: “Os filmes de Herzog, especialmente onde o homem e a natureza estão envolvidos, geralmente são pessimistas, mas Rescue Dawn marca uma mudança distinta: Dengler, como sabemos, sobreviveu para contar sua história, segundo todos os relatos, com sua mente e sua humanidade intactas. A imagem mais caracteristicamente herzogiana aqui é dos olhos de Bale, olhando ferozmente de um arbusto, mas Dengler é salvo da beira do abismo”. 6

A crítica norte-americana de cinema Lisa Schwarzbaum cita um dos motivos pelo qual Dieter Dangler interessaria tanto o cineasta: “Seu compatriota, Herzog disse [ela não diz a fonte da afirmação], personifica tudo o que o cineasta ama na América: ‘Coragem, perseverança, otimismo, autoconfiança… ele era o imigrante por excelência nos Estados Unidos - um jovem que chegou com um grande sonho e passou a representar o melhor do espírito americano’”. 7

Vários críticos ressaltam o cuidado com o ritmo e a preferência pela construção da trama – no caso, o plano de fuga e a relação dos prisioneiros entre si e com seus captores –, em detrimento da ação, o que seria comum num filme hollywoodiano de 2006. Nisso, Rescue Dawn se assemelha mais à produção norte-americana dos 1970s.

Romney, por exemplo: “O filme não é apenas meticulosamente preciso em seu relato do procedimento de fuga, mas também é muito econômico ao evocar o modo como o cativeiro encolhe a alma: vemos Gene ansiosamente olhando por um antigo rótulo de lata de feijão, o equivalente do homem faminto a uma página central da Playboy [foi horrível essa analogia, mas enfim]. A tentativa de Dieter de aumentar o moral compensa no seu aniversário com um brinde de ‘champanhe’ improvisado, feito de larvas de insetos esmagadas”. 8

Lisa também ressalta os aspectos opostos ao que esperamos de um filme de guerra ou fuga da prisão: “Rescue Dawn é um filme triunfante de Werner Herzog. É uma destilação madura, realmente, do que o diretor faz da melhor maneira possível, tirando do caminho qualquer decoração desnecessária (nenhuma conversa de prisioneiro a prisioneiro sobre namorados em casa, nenhum comentário político, nenhuma narração autoral destacada emocionalmente em sotaques cantantes) para permitir que atores excelentes reconstituam manobras incríveis que homens reais realmente fizeram.9

O crítico norte-americano de cinema Roger Ebert, fã declarado de Herzog, completa: “Em Rescue Dawn, filmado nas selvas da Tailândia, nunca há a menor dúvida de que estamos na selva. Não há estrelas de cinema rastejando atrás de arbustos envasados em um lote traseiro. A tela sempre parece molhada e verde, e os atores atravessam a vegetação sufocante com dificuldade. Quase podemos sentir o cheiro da podridão e umidade”. 10

Werner Herzog corrobora as análises positivas: “A guerra realmente não leva em consideração o filme. Em cinco minutos acabou. Dieter Dengler foi abatido aos 40 minutos em sua primeira missão. Essa era a verdadeira história por trás disso. E o filme Rescue Dawn não lida com a Guerra do Vietnã. Naquela época, em 1965, a Guerra do Vietnã ainda não era uma conflagração total da guerra. Ninguém acreditava que isso se tornaria um conflito tão grande. E, claro, número um, sou contador de histórias. Número dois, estou tentando analisar profundamente nossa condição humana, entender o coração humano, e é por isso que tento apontar: não se deixe enganar, não pense que este é um filme de guerra. É, como eu disse, um teste e prova de homens. 11 (...) É a fisicalidade da selva que me atrai - a beleza iminente e perigosa nela. Mas nunca usei uma selva como pano de fundo cênico. É sempre como uma paisagem interior, como febre sonha com uma paisagem. [Tem] uma qualidade humana. Rescue Dawn precisava estar em uma selva no sudeste da Ásia e, de certa forma, é o meu filme mais físico. É mais físico que Aguirre”. 12


O sempre ótimo Christian e um surpreendente Steve

É inegável que temos diversos elementos tipicamente herzogianos aqui (do contrário, o alemão não teria feito dois filmes sobre a mesma história): a luta do homem contra a natureza, sendo esta sempre hostil e enlouquecedora, levando os personagens aos limites físicos e mentais, surge de forma inequívoca aqui. Porém, discordo da comparação com Aguirre, Der Zorn Gottes; tem mais a ver com o ótimo, mas convencional em sua narrativa, Fitzcarraldo, até em seu desfecho anticlimático, até mesmo decepcionante.

A humanidade com que os personagens são retratados também se estende aos algozes em alguma medida, como nota o crítico norte-americano de cinema [inclusive um dos editores do site de Roger Ebert] Matt Zoller Seitz: “No passado, Herzog foi criticado por sua tendência de tratar os residentes do terceiro mundo como parte do cenário, mas em Rescue Dawn ele tem empatia pelos captores de Dengler. Eles são prisioneiros também. Eles são cruéis porque estão entediados e deprimidos, mas ocasionalmente demonstram bondade. Quando eles consideram executar os prisioneiros e abandonar o campo, Herzog deixa claro que esse curso potencial de ação não é evidência de um mal subumano, mas um plano desesperado elaborado por homens que não têm comida suficiente para alimentar a si e a seus reclusos, e preferem apenas ir para casa para suas famílias”. 13


Matt, no entanto, pondera: “O filme não está isento de falhas. A base da história, na verdade, não a previne contra acusações de previsibilidade. A trilha de Klaus Badelt pode ser intrusivamente enfático. E o final triunfante - em que Dengler é recebido de volta à sua frota com aplausos e discursos - é decepcionantemente convencional. 14

A família de DeBruin não curtiu muito o filme, tanto que Jerry DeBruin, irmão de Gene, fez um site chamado Rescue Dawn The Truth [aparentemente já fora do ar], alegando que vários personagens e eventos foram falsamente retratados  - o que é até normal por questões de fluidez da narrativa, mas fez com que diversos atos heroicos dele e de outros prisioneiros (o tailandês Pisidhi Indradat, outro sobrevivente do grupo, também reclama disso na página) fossem ou creditados apenas a Dieter ou simplesmente retirados da história.


Por exemplo, o site afirma que, durante sua prisão, DeBruin ensinou inglês a seus colegas de cela, compartilhou sua comida e até voltou depois de escapar para ajudar um colega de cela ferido. Herzog reconheceu que DeBruin agiu heroicamente durante sua prisão, recusando-se a sair enquanto alguns prisioneiros doentes permaneciam, mas que não sabia disso até depois de o filme ser concluído; no entanto, Pisidhi Indradat e Jerry DeBruin declararam que fizeram várias tentativas de se encontrar com Herzog para garantir a precisão do filme, mas sem sucesso.


A selva é a prisão

Além disso, no filme, Dengler elabora todo o plano de fuga, mas, segundo Jerry DeBruin, os prisioneiros esperaram duas semanas antes de lhe contar o plano, que havia sido elaborado antes de sua chegada.

Mas enfim, Rescue Dawn precisava existir? Não, ainda mais com a existência de Little Dieter Needs To Fly. É um bom filme? Se você esquecer que é obra do Herzog, é um bom entretenimento, apesar do final anticlimático e banal; senão, vai achar tudo convencional demais para os padrões do diretor, a despeito do empenho de Christian Bale e de um surpreendente Steve Zahn, que realmente compraram a história. Também é interessante como é um filme de guerra + sobrevivência na salva totalmente fora dos padrões a que estamos acostumados: não adianta brigar com todo mundo, sair atirando e acabou – afinal, eles se libertam, porém estão no meio de uma selva no Laos, e aí fazem o quê? Como Duane explica a Dengler: "A selva é a prisão - você não entende?" Isso dá um interesse maior à narrativa, mas mesmo assim, é uma obra dispensável pra quem não seja muito fã dos atores ou da temática ‘sobrevivência na selva” – quem foi esperando um filme de ação, vai se decepcionar.


Curiosidades:

- o
filme foi inteiramente rodado em 44 dias e o primeiro corte tinha quase três horas;


- o filme foi filmado em continuidade inversa, de modo que Christian Bale, tendo trabalhado duro para perder peso para o papel, pareceria mais magro no final, e então poderia simplesmente ganhar os quilos de volta ao longo das filmagens;

- Christian Bale perdeu 25 quilos por seu papel, enquanto Jeremy Davies perdeu 15 quilos e Steve Zahn, 18; em uma demonstração de solidariedade, como muitos de seus atores perderam peso por seus papéis, o diretor perdeu quase 14 quilos;

- todos os guardas do campo de prisioneiros de guerra foram baseados em personagens verdadeiros da história de Dieter Dengler, exceto ‘Walkie Talkie’, que é criação do diretor;

- para se preparar para seu papel, Jeremy Davies leu Man's Search For Meaning, de Viktor Frankl, psiquiatra sobrevivente do Holocausto, que escreveu sobre as reações psicológicas experimentadas pelos prisioneiros.

- a cena do acidente de avião é a única cena em que Christian Bale foi trocado por um dublê, Chris Carnel, que sofreu queimaduras leves no rosto devido ao episódio;

- para mostrar o quão impotente e desorientado um homem se sentiria depois de ser capturado e passar fome, o diretor insistiu que, embora sendo mantidos prisioneiros, todos os que eram destros devem usar predominantemente a mão esquerda e todos os que são canhotos devem usar a mão direita; em algumas cenas, Bale ficou extremamente confuso, mas o diretor garantiu que todos estavam assim, como desejado;

- na vida real, Dengler falava inglês com um forte sotaque alemão, que foi reduzido, na composição feita por Bale, ‘para quase zero’;

- o filme retrata seis prisioneiros no campo, enquanto, na vida real, havia sete; Herzog diz que achou difícil escrever o roteiro com sete personagens, e que seis era um número mais gerenciável;

- Dieter Dengler foi capturado não uma, mas duas vezes na vida real; a cena em que ele foi capturado enquanto bebia de um rio é baseado em sua segunda captura;

- quando Dieter é questionado sobre como ele se tornou um aviador naval, ele descreve uma experiência incrível de ver um avião de combate voando muito perto quando era criança na Alemanha em tempos de guerra; a experiência descrita é surpreendentemente semelhante à do personagem de Christian Bale, Jim, dezenove anos antes, em Empire Of The Sun (1987), de Steven Spielberg;

- o final excessivamente feliz retratado no filme realmente aconteceu com Dieter Dengler em seu resgate e, embora possa parecer um final brega de Hollywood para muitos espectadores, Herzog achou que mudar o desfecho não seria um bom tributo ao personagem principal, além de talvez não não combinar com a sensibilidade de alguns membros da platéia;


- após seu lançamento nos cinemas, em 2007, Rescue Dawn foi indicado para diversos prêmios, como o Golden Satellite Award e o Independent Spirit Award, e Christian Bale venceu o prêmio de conjunto da obra no San Diego Film Critics Society.




1 3 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0712200707.htm
2
Herzog, Werner. In.: Werner Herzog: A Guide For The Perplexed, de Paul Cronin. Faber & Faber, 2014.
4 5 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
6 8 https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/films/reviews/rescue-dawn-12a-760436.html
7 9 https://ew.com/article/2007/07/02/rescue-dawn-3
10 https://www.rogerebert.com/reviews/rescue-dawn-2007
11 12 https://filmmakermagazine.com/archives/issues/summer2007/rescuedawn.php
13 14 https://www.nytimes.com/2007/07/04/movies/04dawn.html

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

(2005) The Wild Blue Yonder

Alemanha | 81min | super 16 mm | cor
Roteiro e direção: Werner Herzog
Produção: Irma Strehle
Som: Joe Crab, Eric Spitzer
Montagem: Joe Bini
Fotografia: Peter Zeitlinger
Música: Ernst Reijseger, interpretada por Mola Sylla e os coros sardos Tenore e Cuncordu de Orosei
Elenco: Brad Dourif


É um filme de ficção científica com um alienígena, Brad Dourif, que eu amo como ator, e que tem algumas das cenas mais extraordinárias já filmadas no espaço, em uma missão espacial realizada em 1989. Os astronautas filmaram eles próprios dentro da espaçonave em celuloide de 35 mm, com uma qualidade tão grande que eu quis criar uma história de ficção científica em volta deles. A segunda parte tem imagens filmadas sob a camada de gelo do Mar de Ross, na Antártida. É um mundo completamente alienígena: se você nada embaixo do gelo é como se estivesse em um planeta diferente, que eu chamei de The Wild Blue Yonder ("Além do Azul Selvagem"), em algum lugar na nebulosa de Andrômeda. É uma fantasia de ficção científica selvagem, com música extraordinária, de Ernst Reijseger." 1

Como diz o próprio site do diretor, The Wild Blue Yonderé a história de astronautas perdidos no espaço, o segredo de Roswell ‘reexaminado’ e Brad Dourif, em ótima performance, como alienígena, nos contando tudo sobre seu planeta natal – O Selvagem Azul Longínquo – onde a atmosfera é composta de hélio líquido e o céu é congelado. Usando imagens únicas, belas e inéditas, com acesso aos cinco astronautas responsáveis pela missão Galileo, e com música especialmente composta, Herzog criou uma visão espetacular de imagens, sons, música e emoção humana, tudo parte de sua ciência-fantasia”. 2

Nada muito modesto, mas o filme é isso mesmo: um arremedo de ficção científica com imagens deslumbrantes do céu e da terra. Sim, isso lembra Fata Morgana e Lektionen In Finsternis, tanto que a estudiosa italiana de cinema Grazia Paganelli sustenta que os três filmes formam uma espécie de trilogia: “Fata Morgana, Lektionen In Finsternis e The Wild Blue Yonder tornam-se etapas sucessivas de um projeto de ficção científica, perseguindo a ideia do olhar alienígena que nos oferece elementos impensáveis e momentos de reflexão sobre a criação, sobre a vida e sobre a morte. Precisamente, fragmentos de uma trilogia de ficção científica, que se inicia nos desertos africanos, com o mito do Popol Vuh, quando a Terra não tinha forma, quando tudo era silencioso, céu e água, continua pela fúria ardente dos poços do Kuwait, na hostilidade cortante de seres desconhecidos, e se conclui nas profundezas sem fim do mar e do céu. Uma volta completa, do céu ao céu, do seu brilho inerte à obscuridade do abismo, da origem ao fim dos mundos”. 3

Alien

O estudioso norte-americano de cinema alemão Brad Prager concorda: “O filme empreende um projeto com o qual Herzog está há muito engajado: alcançar a visão do mundo como um astronauta poderia vê-lo, uma visão da Terra que ele tentou alcançar com Fata Morgana e com Lektionen In Finsternis. Herzog é bastante explícito sobre essa interconexão, considerando que os três estão em algumas variações de nível do filme de ficção científica.4


O plot é tão livre quão intrincado: uma missão espacial se vê impedida de regressar a Terra porque, devido a uma estranha e letal bactéria, as condições de vida por aqui se tornaram impossíveis; assim, os astronautas se lançam espaço sideral afora em busca de outro lugar para habitar, e julgam tê-lo encontrado na Galáxia de Andrômeda. Tudo isso é contato por um alienígena, justamente desse planeta, que veio a Terra numa fracassada tentativa de contato com a espécie humana, pois seu lar também estava se tornando ambientalmente inviável para sua raça. E os terráqueos, quando voltam para cá, quase mil anos depois [as viagens são feitas via buraco-deminhoca], se deparam com o orbe totalmente desabitado de pessoas, retornado ao seu estado selvagem, primordial.

Grazia Paganelli acrescenta: “Assim, no final de The Wild Blue Yonder, depois da utopia de uma colônia espacial, o regresso dos astronautas a Terra é uma surpresa zombeteira. Ao fim de 820 anos atravessam o túnel do tempo, os seus corpos se dissolvem em partículas e depois em luz pura, mas a Terra já não é habitada, tornou-se um enorme parque natural sem estradas nem aeroportos onde aterrar. 'Regressara à sua beleza originária. Era de novo a Pré-História'. Como penetrar num espelho profundo, depois de tanto viajar, depois de ter enganado o tempo, com a necessidade de recomeçar desde a origem de tudo”. 5

Terráqueos

Sim, é uma confusão, e confesso não ter entendido direito quando vi o filme pela primeira vez, numa mostra de cinema, em meados da década passada [e nem sei se entendi mesmo agora]. Porém, o arremedo de história é contado com diversos artifícios – o alienígena, imagens de cinema mudo, sequências com astronautas em um módulo espacial e tomadas nos mares gelados da Antártida – que dão como resultado um filme muito bonito, ainda que muito mais sensorial do que propriamente disposto a contar uma história. É extático e ora catártico, ora com certo humor deprimido [deve ser o tal ‘humorismo bávaro’ a que Herzog se refere em alguns de seus filmes].

Além disso, nesse tipo de filme herzogiano, não se pretende que  os espectadores se encontrem imersos na história retratada na tela; ao contrário, é exigida uma suspensão de descrença bastante ativa. Afinal, além da história frouxa, o filme não faz nenhum esforço para ser realistas: o tal alienígena narrador não tem qualquer vestimenta, maquiagem ou modo de falar que o diferencie de uma pessoa ordinária; as imagens subaquáticas da Antártida, que aparecem à guisa de planeta natal do ‘Alien’, incluem mergulhadores movendo-se na água e momentos em que se pode perceber claramente mãos com luvas de mergulho seguram a câmera digital que grava as sequências.

Tudo isso dá certa inadequação ao material: a narração do Alien, as imagens do começo do século 20 ilustrando ironicamente suas falas, tudo é deliberadamente feito para que soe estranho e até ridículo, como detalha a estudiosa norte-americana de cultura alemã Laurie Ruth Johnson completa: “Em The Wild Blue Yonder, como em outros filmes, Herzog repetidamente nos dá imagens de coisas que funcionam independentemente das próprias coisas. As coisas podem ter certo sentido, mas Herzog usa imagens de um modo que não enfatiza nem sequer se refere a esse propósito. Não vemos aplicação para as turbinas, o exercício do tanque de água do astronauta é descontextualizado, e nem trens nem caminhões chegam a uma estação, e ainda assim todas as imagens dessas coisas são propositais e ocres dentro de si ”. 6

Quanto ao humor, o próprio diretor confirma: “Como em muitos dos meus outros filmes. As pessoas raramente falam nisso, mas quando os vemos na sala de cinema, há sempre alguém que ri porque compreendeu o absurdo total de certos momentos. Rimos mais quando vemos The Wild Blue Yonder do que quando vemos uma comédia do Eddie Murphy. Se pudéssemos cronometrar a duração do riso, estaríamos quites, eu e Eddie Murphy. Em The Wild Blue Yonder, o humor não é calculado como num filme de Billy Wilder, por exemplo. Wilder calculava seu timing de comédia com uma precisão extrema. No meu filme, o humor tem uma qualidade diferente, vem da pura alegria de fazer filmes.  Naturalmente que, considerando a forma como nos divertimos, o humor aparece misturado com o gozo espontâneo de todos que participaram do projeto, com o nosso próprio riso (...) Diria que o humor emerge organicamente dos meus filmes. Não há nenhum plano preciso calculado para obter o efeito cômico. Tudo faz parte da alegria pura em contar uma história”. 7

Azul & longínquo

Para além desse tal ‘efeito cômico’, o que realmente impressiona no filme – assim como fora em Fata Morgana e Lektionen In Finsternis – é o uso de imagens da Terra, do lugar onde vivemos, de pessoas como nós, como se fossem polaroides de um lugar ou um futuro muito distantes: essa sensação de estranheza e maravilhamento diante do que, de certa forma, vemos [ou podermos ver] com certa facilidade é um grandíssimo talento de Herzog, e, mais que isso, é mostrar que neste planeta e entre a gente há muito caos e estranheza. Por isso essa opção de fazer ficção quase que somente com imagens documentais.  


Essa ideia de que mesmo nosso mundo não nos pertence, que mesmo aqui não sejamos acolhidos, é, de certa forma, compartilhada por Grazia Paganelli: “É a invenção da realidade que reina em The Wild Blue Yonder. Aqui o jogo ainda é mais sutil [que em Grizzly Man], o excesso de sentido das imagens da Nasa é contrabalançado por um excesso de ficção. A história dos extraterrestres, exposta na sua dramaticidade vibrante, perde-se no imenso espaço ‘irreal’ das profundezas marinhas e dos abismos do cosmos. Recorda-nos Fata Morgana, a miragem de qualquer coisa que, ao mesmo tempo, existe e não existe, imagem nunca vista que não será mais possível ver do mesmo modo”. 8

O filme trabalha com temas caros ao diretor: a ideia de que a existência, a natureza, tudo é extremamente caótico e hostil; a vida na Terra deu errado, a vida em outros planetas dá errado, tudo é selvagem e inóspito; as relações dão errado, até mesmo entre humanos e alienígenas; o Alien é um perfeito desajustado, praticamente um Stroszek interestelar; e, por fim, uma ideia megalomaníaca de conquista falha miseravelmente. Todo sonho de conquista acaba em desolação no universo herzogiano. No Selvagem Azul Lingínquo que há lá fora e dentro de nós.

Para encerrar a análise deste filme que, por mais estranho, eu julgo obrigatório para quem ame cinema [numa tela grande o efeito é bem melhor, mas enfim], se você estiver no clima para embartcar nessa quase-história de melancolia infinita, nada como a frase do crítico inglês de cinema Mark Kermode: “Quanto a Herzog, ele é um bravo soldado do cinema, sem medo de fracassar, sempre pronto para levar a bala enquanto continua audaciosamente aonde nenhum homem foi antes”. 9


Curiosidades:

– sobre o orçamento do filme, o alemão explica: “É interessante como eu financio meus filmes: The Wild Blue Yonder foi feito inteiramente com o dinheiro que eu ganhei com meu filme anterior, O Homem-Urso, que foi um enorme sucesso de público, o maior nos cinemas dos EUA de um filme de não ficção; ganhei algum dinheiro com esse documentário e imediatamente investi tudo nesse outro projeto; provavelmente é por isso que eu nunca vou enriquecer (risos); minha riqueza são meus filmes”; 10

– parte da ideia de The Wild Blue Yonder vem do argumento que seria usado, mas acabou descartado, em Fata Morgana – uma história sobre alienígenas de Andrômeda cujo planeta estaria em vias de ser destruído;

– a trilha sonora é feita e executada pelos mesmos responsáveis pelas músicas de The White Diamond;

– sobre as teorias científicas que aparecem no filme, o diretor conjectura: “Se não tivesse começado a fazer filmes, talvez tivesse sido matemático; acho que teria gostado de sê-lo”; 11

– a série Futurama, de Matt Groening [que já havia feito piada com Fitzcarraldo n’Os Simpsons], tem um episódio, de 2009, chamado Into The Wild Green Yonder.



1 10 https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2012/11/werner-herzog-a-zh-daria-tudo-para-conhecer-garrincha-3962003.html
2 https://www.wernerherzog.com/main/de/html/films/films_details/brief_survey.php?film_id=52
3 5 7 8 11 PAGANELLI, Grazia. Sinais De Vida: Werner Herzog E O Cinema (Segni Di Vita: Werner Herzog E Il Cinema, 2008). Editora Indie Lisboa, 2009.
4 PRAGER, Brad. The Cinema Of Werner Herzog: Aesthetic Ecstasy And Truth. Wallflower Press, 2007.
6 JOHNSON, Laurie Ruth. Forgotten Dreams: Revisiting Romanticism In The Cinema Of Werner Herzog. Cadmen House, 2016.